O leão de Maputo
Geny Catamo foi figura maior do dérbi de Alvalade (Miguel Nunes)

OPINIÃO O leão de Maputo

OPINIÃO11.04.202408:40

«O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos». Mia Couto.

Geny Catamo faz-me lembrar o Pedro, personagem do livro infantil «O Caso do Menino Leão», de André e Gustavo Prudente. Pedro é um menino forte, alegre, inteligente e que costuma liderar todos os outros meninos. Deseja ser como um leão, o rei dos animais, e, um dia, ao acordar, descobre que seu desejo se realizou. E Pedro aprende na concretização deste desejo que a força que ganhou brotou do respeito, cuidar dos outros e cultivar amizades verdadeiras. E tornou-se leão.

Jogando de pés descalços, nas ruas do Bairro do Aeroporto, Maputo, Geny Catamo, quando criança, já desejava ser como um leão. Ou talvez quisesse ser artista. O Bairro do Aeroporto há muito se tornou conhecido como o Bairro dos Artistas, incubador de nomes maiores da cultura moçambicana e lusófona, com especial destaque para a pintura e artes plásticas. Uma escola a céu aberto de onde emergiram nomes como Malangatana – referência maior da lusofonia, da pintura à poesia – Shikhani ou, entre tantos outros, o contemporâneo e talentoso João Timane. Ou talvez Geny Catamo quisesse ser ambos, forte como um leão, desenhado sonhos na terra batida com pés descalços e uma bola de futebol.

Geny, o miúdo que mandava nos outros

Aos 15 anos, num concurso de caça talentos promovido pelo FC Porto, impressionava tanto pela magia nos pés como pela personalidade de dar ordens e organizar os companheiros de equipa que eram dois ou três anos mais velhos do que ele. Ficou em primeiro entre 1200 jovens. Mas não foi no FC Porto que ficou, foi no Sporting. Onde teve de esperar cinco anos, entre empréstimos e passagens fugazes na equipa principal, até explodir. Além de forte, Catamo foi paciente. O futuro não é uma linha reta.

Nesta espera, Catamo como o protagonista de um outro livro infantil: O Leão que temos cá dentro, de Rachel Bright. «Não tens de ser grande nem valente para encontrares a tua voz». Mas quando o personagem principal, um pequeno rato, parte em viagem à procura do seu rugido, descobre que «até a mais pequenina criatura pode ter um coração de leão.»

Mister, o que é defender?

«Mister, o que é defender?». Passe o óbvio exagero, terá sido isto que Catamo perguntou quando Rúben Amorim lhe disse que não bastava a vertigem do assalto às balizas… Para ser um leão forte e respeitado, tinha de ajudar também a defender. Ser como o Pedro a cuidar dos outros. Imbuído no espírito do Hino de Moçambique, que tanto o acalenta, «pedra a pedra construindo um novo dia». Ele que se perfila já como o sucessor de Elias Pelembe, mais conhecido por Dominguez, 40 anos, como a figura maior do futebol moçambicano. Num momento em que se assinalam os dez anos do desaparecimento de Eusébio e Mário Coluna.

Quando, a espaços, alguém me interpela para ler o meu futuro na palma da mão, eu recuso delicadamente. Não tanto por falta de fé na capacidade de outros preverem o futuro, mas porque essa previsão só me daria prejuízo: se previsse coisas más iria estragar os meus dias num sofrimento antecipado; se previsse coisas boas iria estragar a surpresa… Por isso, não sei nem faço questão de antecipar o futuro de Geny Catamo. Elogio-lhe o talento, a personalidade, a paciência de saber esperar e a capacidade de acreditar que tinha um leão dentro dele. Que mantenha a chama acesa. Nas palavras do também moçambicano Mia Couto, meu escritor de eleição, «o suficiente é para quem não ama; no amor, só existem infinitos».