O golo!
Golo que é golo não pode deixar de ser golo. Negar-lhe esse direito é negar o jogo
PARECE-ME que só há realmente uma coisa que não devia poder suceder no futebol: marcar-se um golo legal e ele não valer. É a única coisa que não devia poder suceder. Na verdade, por muito que isso custe a quem se ache prejudicado, sempre houve, há e continuará a haver grandes penalidades que os árbitros não veem e por isso não marcam e que os VAR veem mas entendem não marcar, sempre houve, há e continuará a haver diferentes interpretações sobre os mais diversos lances de cada jogo de futebol, seja a carga de ombro com mais ombro ou mais costas, seja a bola na mão ou a mão na bola, mais ou menos acima no braço, seja a rasteira mais ou menos involuntária, a pisadela intencional ou sem querer, seja o choque inevitável ou a entrada mais dura e agressiva. Temos de continuar a viver com isso por muito pouco preparados que continuemos a estar (e estamos) para aceitar essa idiossincrasia do próprio jogo.
O que já me parece absolutamente inaceitável é marcar-se um golo legal e ele não valer. Julgo que, mais coisa menos coisa, devemos aceitar tudo o que venha a ser razoavelmente decidido num jogo de futebol. Menos isso. Um golo que é golo tem mesmo de ser golo. Não pode deixar de o ser. O golo é a essência do jogo. É o objetivo. É o espírito. Por princípio, no jogo tudo se passa para se atingir o golo. Ora, permitir-se que um golo legal não seja golo é subverter o jogo. É negá-lo. É subtrair-lhe a essência. E a existência. Deixa de ser jogo.
EXATAMENTE por terem percebido que essa é realmente a única coisa que não pode mesmo permitir-se que suceda é que os ingleses, no seu bom e muito saudável hábito de cuidar do jogo como ninguém, adotaram a chamada tecnologia de baliza (o conhecido olho de falcão) muito antes sequer de se preocuparem em ter a tão discutida vídeoarbitragem (o VAR). Ou seja, não tiveram mais olhos que barriga. Compreenderam antes de todos que não podiam querer diminuir os erros de arbitragem sem primeiro cuidarem do essencial - impedir que um golo legal fosse irremediavelmente ferido, porque ferir um golo legal é ferir de morte o próprio jogo.
Assim, os ingleses adotaram a tecnologia de baliza a partir de 2013, num investimento, à época, que rondou quase 12 milhões de euros para instalar o sistema nos estádios dos 20 clubes concorrentes à Premier League, e que hoje corresponde a um investimento bem menor e a um processo mais simples de instalação do que se verificava na altura.
Mas também a FIFA concluiu pela inevitabilidade da decisão e, um ano depois, no Mundial-2014, no Brasil, apresentou solução semelhante, instalando em todos os 12 estádios da fase final o sistema, não o inglês, mas o de uma empresa alemã, de goal control.
Énaturalmente compreensível a impossibilidade de se aplicar um tecnológico recurso auxiliar em todos os estádios onde decorram jogos de qualificação para as grandes competições internacionais, como é o caso particular do Campeonato do Mundo, admitindo-se, evidentemente, que as condições possam não ser as mesmas, com devido respeito, num jogo em África ou na Europa. Mas não devem a FIFA e, neste caso, a UEFA, fazer escolhas e aplicar esses recursos nos jogos mais importantes, com equipas de valor mais equilibrado, onde em teoria as equipas em confronto tenham dimensão e mais forte impacto no mundo do futebol?
Dir-se-á que não é justo que possam uns contar com esses auxílios tecnológicos e outros não.
Pois sim, mas a verdade é que não consta que haja videoárbitro em todos os jogos de futebol à volta do mundo. Nem pode ainda haver, porque isso só existiria no mundo ideal.
Há países que ainda não conseguem ter videoárbitro, há países que têm videoárbitro apenas nos jogos da liga principal, há países que o têm nas ligas profissionais (primeira e segunda), há competições internacionais com videoárbitro em todos os jogos, outras com videoárbitro apenas nalgumas fases, enfim, é perfeitamente compreensível que não possa adotar-se toda a tecnologia em todo o lado.
Mas é indispensável tomarem-se opções. O que é pior? Defender-se o jogo só nos encontros mais importantes ou não se defender em nenhum? Defender-se só na Europa ou não se defender sequer na Europa por não se poder defendê-lo compreensivelmente da mesma maneira, por exemplo, na qualificação africana? Mas não será preferível defender-se o jogo gastando algum dinheiro do que ganhar-se muito dinheiro sem se defender o jogo?
Jogaram-se agora 25 partidas em cada uma das três jornadas desta qualificação europeia para o Mundial de 2022. E não podendo, admita-se ainda que com alguma dificuldade, ter vídeoarbitragem em todos os 25 jogos, não conseguiria a UEFA (uma das entidades mais ricas do futebol mundial, tal como a FIFA) impor, pelo menos, em cada jogo a tecnologia de baliza que impedisse o que infelizmente veio a acontecer no Sérvia-Portugal e que é exatamente a única coisa que não devia poder acontecer num jogo de futebol?
Fonte da UEFA, citada pela agência Reuters, veio explicar que «a decisão de usar a tecnologia da linha de golo nos jogos de apuramento pertence à federação que organiza cada um dos jogos. Se quiser, esse mesmo organismo tem apenas de obter, por escrito, consentimento da federação visitante para que o sistema seja utilizado.»
Não parece a UEFA a sacudir a água do capote, enquanto os cães ladram e a caravana passa?…
Ou será a UEFA a tentar convencer-nos de não ter força suficiente para impor essa utilização? Ou o que está em causa nestes jogos de qualificação para um Campeonato do Mundo não o justificará?
RECORDO, a propósito, que essa tecnologia de baliza, conhecida por olho de falcão, é um programa informático que analisa a grande velocidade as imagens gravadas por uma série de câmaras para determinar, de forma muito rápida, a trajetória exata da bola. O sistema da Premier League utiliza sete câmaras em cada baliza e combina o sinal que recebe dos vários ângulos para formar uma imagem em três dimensões e determinar com precisão milimétrica se a bola ultrapassa a linha de golo.
Michel Platini, que teve tanto de brilhante jogador no passado como de controversa personalidade até se ver forçado a resignar, em 2016, à presidência da UEFA, sempre esteve, lembro, bastante isolado na sua posição contra a utilização da tecnologia na linha de baliza, tendo chegado a afirmar, imagine-se, que nada justificaria a adoção de um sistema para detetar, cito, «um erro que acontece uma vez em 40 anos».
Pelos vistos, essa mensagem continua a fazer alguma escola, ou pelo menos a levar alguns responsáveis a crer ainda que haverá erros que só acontecem de 40 em 40 anos. Infelizmente, não é assim.
E se todos os erros podem ainda fazer parte do jogo, o mínimo que o jogo nos exige é a obrigação intransigente de impedirmos pelo menos um deles: o de não se ignorar um golo que é golo.
Tudo menos isso!
UMA última palavra para o momento do golo-que-não-foi-golo e para a reação do capitão da Seleção Nacional, Cristiano Ronaldo, nesse famigerado jogo com a Sérvia, em Belgrado.
Nota prévia: não me parece, para ser inteiramente verdadeiro com a minha opinião, que o árbitro auxiliar pudesse ter alguma certeza sobre o tão lamentável lance, desde logo pela posição em que estava, pela previsível perturbação causada pela presença de, pelo menos, dois jogadores no ângulo de visão, e pela desumana velocidade em que tudo ocorre. Sem ter a certeza, o árbitro auxiliar não poderia, obviamente, fazer outra coisa se não levar o árbitro a decidir como decidiu, seguindo o princípio - absolutamente essencial na justiça - de ser preferível absolver um culpado que condenar um inocente.
Quanto ao capitão da Seleção, acharão mesmo os que mais duramente o criticam que Ronaldo quis ofender Portugal e os portugueses ao atirar a braçadeira de capitão para o chão? Não acredito, com toda a franqueza, que se acredite genuinamente nisso.
Talvez não tenhamos visto Cristiano Ronaldo no seu melhor, e ele saberá, certamente, reconhecê-lo. Mas não se esqueçam que foi ele um dos que viram claramente a bola dentro da baliza, e isso, num momento de pressão como aquele, leva-nos, como humanos, a pagar muitas vezes o preço que não quereríamos.
Mas não tem o Cristiano Ronaldo no seu melhor, sido a alma e o coração da seleção de Portugal?
Não lhe devemos o ter mudado tanto o futebol português?
Não temos de lhe reconhecer esse amor a Portugal?
Critiquemo-lo, sim, mas deixemo-nos de braçadeiras. E de brincadeiras...