O exemplo!

OPINIÃO21.02.202003:00

Entre alguma demagogia e bastante hipocrisia, não devemos, na realidade, esquecer o essencial do que sucedeu, no último fim de semana, em Guimarães. E o essencial é destacar a coragem e o caráter de Marega. É graças a ele, e só a ele, que nada mais será como dantes. Porque na verdade, se Marega tivesse continuado em campo, o incidente, o grave incidente de Guimarães, teria sido apenas mais um na extensa lista de incidentes, estúpidos incidentes, com cânticos racistas - e não apenas racistas… - que tão mal fazem ao ambiente do futebol e ao ambiente dos estádios de futebol, que temos, todos, testemunhado, sobretudo ao longo dos últimos anos.

Em Portugal, Marega teve a coragem que nenhum outro jogador ousou ter. Teve a coragem, a decisão, a determinação de pôr ponto final à indignidade e humilhação de que foi vítima. E deu um grande exemplo.

Nós, portugueses, somos mesmo assim, somos habitualmente tão passivos e cinzentos que precisamos muitas vezes que alguém nos dê uma verdadeira chapada (com ou sem luva) para finalmente despertarmos para uma realidade que, mesmo debaixo do nariz, parecemos teimar em não querer ver.

Foi preciso Marega fazer o que fez para, de repente, todos nos indignarmos.

Até agora, por muito que tivéssemos testemunhado situações semelhantes, ninguém se mexeu, ninguém levantou definitivamente a voz, ficámo-nos todos pela decisão de lamentar de braços cruzados. Todos!

Nunca valorizámos, como devíamos, o que se passava.

E porquê?

Porque alguns dos jogadores em causa se limitavam a ignorar (como ainda agora reconheceu o defesa do Barcelona, Nélson Semedo, que diz ter sido vítima de insultos racistas quando jogava no Benfica)?

Ou porque até brincaram com a situação (como fez, por exemplo, o jovem Renato Sanches, quando, em abril de 2016, viu - e ouviu - adeptos do Rio Ave gritarem-lhe sons a imitar macacos e respondeu, com um sorriso, imitando ele próprio gestos de macaco quando abandonava o relvado do Estádio dos Arcos)?

Foi preciso Marega fazer o que fez para deitarmos as mãos à cabeça. Pois foi.

Devíamos ter vergonha!

Oque sucedeu em Guimarães já sucedeu em muitos outros estádios, em Portugal e lá fora. Com adeptos de muitos clubes. Não são os adeptos do Vitória que são os racistas, os adeptos do Vitória que insultaram Marega são iguais aos adeptos de tantos outros clubes que transformam os palcos do futebol em qualquer coisa de inqualificável, seja lá porque entoam cânticos racistas contra jogadores negros, seja porque cantam ofensas a adversários, seja porque destilam ódio em lugar do genuíno apoio às próprias cores.

O problema não está no clube A, B ou C.

O problema estará hoje no modo como muitos de nós vivem o futebol. E no facto de o futebol ter passado a alimentar estes ódios, estas manifestações, como disse, e bem, o presidente do FC Porto, nalguns casos certamente mais estúpidas do que verdadeiramente racistas, mesmo sabendo nós que este tipo de atos, insultos com sons a imitar macacos, estas alarvidades de que já foram vítimas muitos jogadores de futebol, não se dirigem, como sabemos, a jogadores brancos, mas aos negros, porque mesmo os que não serão, porventura, racistas, devem pensar que isso desestabiliza os jogadores, e na verdade desestabiliza, porque os fere no que de mais vital tem a dignidade humana - e não estou, evidentemente, a dizer, em absoluto, que racismo é apenas o ato discriminatório de brancos para com negros.

Faço apenas referência ao que sabemos que tem ocorrido em estádios de futebol.

É horrível o que aconteceu em Guimarães, como é horrível o que sucedeu em todos os outros estádios onde muitos adeptos fizeram exatamente o mesmo, julgando que apenas desprezam os adversários, e não percebendo que se desprezam a eles próprios e ao futebol.

A diferença, agora, esteve, sublinho, no que fez Marega. Fartou-se e gritou: «Isto tem de parar!»

Não sei, nem Marega, evidentemente, saberá, se tudo isto vai ou não parar. Mas tenho, pelo menos, a ideia de que nada mais será como era antes. Graças a Marega!

Li nalguma imprensa internacional, nomeadamente em Espanha, títulos como «Vergonha em Portugal!», como se vergonha fosse apenas o que sucedeu no nosso País e não o que já ocorreu em Espanha e em muitos outros países.

Vergonha não é só o que sucedeu em Portugal, vergonha é o que se passsa no futebol e em todo o futebol onde se vivam as cenas lamentáveis que se viveram em Guimarães, porque o futebol, aqui e em qualquer parte, reflete tudo o que de bom e mau tem a sociedade, e porque o futebol amplifica, infelizmente, o ódio, o racismo, o fanatismo, e outros sentimentos absolutamente reprováveis, por culpa de todos nós, agentes desportivos, adeptos, dirigentes, jornalistas, políticos, doutores e engenheiros… que também contribuímos, cada um com os seus defeitos e irresponsabilidades, para o que acaba por ser, depois, o mau comportamento das massas num espetáculo que se transformou numa das atividades mais influentes do mundo.

Tão emocional como é, tão irracional como se define, tão contagiante como se vê, o futebol é apenas, pobre futebol, um dos veículos mais privilegiados para muitos dos que vão apenas escondendo no dia a dia algumas das maiores imperfeições humanas, como, entre outras inaceitáveis intolerâncias, o ignóbil sentimento do racismo.

Fingimos durante demasiado tempo. Até alguém fazer realmente a diferença. E a diferença, a grande diferença, fê-la agora Marega. Com caráter e com a coragem de fazer o que fez num clube de grande dimensão internacional, que luta pelo título do futebol em Portugal, e sem qualquer medo de eventuais consequências desportivas porque, na verdade, nenhuma consequência desportiva poderia, naquele caso (era bem o que faltava), sobrepor-se à humilhação de que Marega se sentiu, justificadamente, vítima.

O exemplo de Marega faz (e fará, creio), indiscutivelmente, mais, muito mais, pela luta contra estes apelos racistas e contra estas odiosas manifestações nos estádios de futebol do que muita da filosofia de gabinete que, em Portugal, em muitos outros países, na própria UEFA e FIFA, tem servido rigorosamente para coisa nenhuma.

Marega tem de ser, a partir de agora, um dos heróis de todos os que já foram vítimas e de todos os que possam vir a sê-lo, mas também todos os que, conscientemente, como eu, estão cansados de ver o futebol tratado, tantas vezes, como um episódio de guerra entre gente que faz do ódio um instrumento de combate para vencer.

É o futebol que sempre perde. O futebol e a vida. Como Marega tanto fez, agora, por deixar claro, num exemplar e notável grito de revolta!

Por outras razões - algumas das quais, porém, sobretudo no comportamento e no espírito, semelhantes às que Marega colocou, agora, em debate - agiu, e bem, o presidente do Sporting, fazendo frente a claques organizadas de adeptos leoninos, contra uma certa e inaceitável filosofia de claque, que põe, como sabemos, em risco o normal funcionamento de um clube, coloca em causa o saudável relacionamento entre as diferentes forças - dirigentes, profissionais, adeptos - e ajuda a destruir alguns dos mais nobres valores do desporto e do futebol. São essas as claques de que o futebol não precisa. Nem o futebol, como espetáculo, nem, evidentemente, nenhuma outra atividade desportiva de competição.

Já o escrevi, e repito: se o Estado, o Governo, as autoridades da segurança, os responsáveis do desporto e do futebol, os dirigentes dos outros cubes deixarem, nesse capítulo, Frederico Varandas a lutar sozinho, será uma vergonha!

Pode o Benfica dar-se por muito feliz com o resultado que traz da Ucrânia para o jogo da segunda mão destes 16 avos de final da Liga Europa, dentro de uma semana, no Estádio da Luz. Apesar de derrotado, é, no fim de contas, mais do que lisonjeiro, ainda positivo o resultado para os encarnados, tendo em conta que o golo marcado fora de casa pode, como muitas vezes sucede, tornar-se decisivamente favorável aos portugueses. Muito depende do modo como, entretanto, a águia for sendo capaz de ir gerindo esta meia depressão em que parece ter caído pela fragilidade exibicional que vem mostrando em campo e pelos resultados na Liga que a deixaram na liderança apenas com um ponto de vantagem sobre o rival.

Também o FC Porto, defrontando claramente o mais difícil, forte e exigente dos adversários das equipas portuguesas, conseguiu, com o golo feito na Alemanha, que a derrota pese bem menos do que pesaria sem o golo a favor.

Num cenário sempre muito difícil na luta por um lugar nos oitavos de final desta Liga Europa, o dragão pode, justificadamente, alimentar esperança. Sobretudo, porque deve confiar nos jogadores que tem, fortes, musculados, competitivos, determinados, que mesmo quando não jogam bem mostram, quase sempre, atitude, caráter e intensidade.

Conseguiu, por seu lado, o Sporting garantir, apesar do golo sofrido, uma vantagem já considerável para manter forte a esperança de seguir em frente na única competição em que os leões podem, ainda, fazer o chamado brilharete, e a verdade é que a exibição da equipa de Silas deixou finalmente alguma água na boca dos adeptos, porque foi bastante mais criativa, intensa, organizada, criteriosa e ofensiva do que, nomeadamente, a última, na Liga portuguesa.

Deixo o SC Braga para o fim porque este SC Braga, que está, realmente, a tornar-se um caso muito sério de força e confiança competitivas, pelo muito que vence, mas também, naturalmente, pelo que joga, esteve quase, quase a ser a sensação da jornada europeia de ontem, e, mesmo assim, muito em sentido deixou um Rangers que exemplifica bem o espírito do futebol britânico.

Em resumo, apesar de três derrotas portuguesas, ninguém deve dar-se por vencido.

PS: O que o jogador do SC Braga, Raul Silva, fez, no último fim de semana, no Estádio da Luz, deve envergonhar os profissionais de futebol. Gozou com o espetáculo, gozou com o público, gozou com o adversário. Uma tremenda falta de respeito, que, em relvados portugueses, que me lembre, há muito não se via de um profissional. Em Inglaterra, levaria seguramente muitos jogos de castigo. E bem! Por cá, talvez leve um por ter acabado expulso. E, quem sabe, talvez até umas palmadinhas nas costas. Depois queixamo-nos!