O engano
Não é fácil mudar comportamentos que são, também, culturais!
N ÃO sei, sinceramente, como se resolve um problema cultural. O que sucedeu no Estádio do Dragão, no final do FC Porto-Sporting, é também um problema cultural. Não se trata só de ganhar ou perder; não se trata só do desporto e muito menos só do futebol. Somos todos, também, um pouco assim. Culturalmente.
Está, na verdade, um bocadinho enraizada esta nossa tendência para o engano (enganar, iludir, lograr, induzir em erro, ludibriar) e ganhar a qualquer preço, ganhar vantagem violando a regra e contornando a lei. Faz um pouco parte deste ser português e está longe, repito, muito longe, de ser apenas exclusivo do futebol. Fulano ‘roubou’? Que importa isso se deixou obra?! Sicrano enganou? Mas ganhou, não ganhou?!
No futebol, essa cultura do engano fica mais exposta, desde logo, ao extenso tribunal do vídeo, e como hoje se vê tudo na televisão, já quase não dá, como outrora, para disfarçar ou ocultar o pecado.
Toda a gente que acompanha o futebol há, pelo menos, mais de 30 anos - é o meu caso - sabe que essa tendência para pisar o risco, e até ultrapassá-lo, sempre que necessário, na tentativa de levar vantagem sobre o adversário tornou-se, durante boa parte daquelas décadas, prática efervescente do comportamento estratégico do FC Porto.
É possível que os responsáveis do grande clube azul e branco tenham, naquele tempo, considerado indispensável determinado tipo de práticas no combate ao centralismo dominador dos clubes de Lisboa, do tipo, ‘se não os vences a bem, então terás de os vencer a mal’.
São muitos os exemplos de comportamentos condenáveis ao modo como o FC Porto foi construindo e dimensionando a sua estratégia para impor-se e vencer no futebol português. Eu próprio, mas sobretudo muitos outros profissionais de A BOLA que já cá não estão para o contar, fomos vítimas da forma como os responsáveis do FC Porto, a partir da década de 80, começaram a desenhar o modo de lutar por uma coisa muito simples e, ao mesmo tempo, tão complexa: ganhar!
Muita coisa mudou, evidentemente, no entretanto do futebol português, e é indesmentível que a organização portuguesa do Euro-2004 foi decisiva para, no que diz respeito ao espetáculo, alterar padrões, desde logo porque, mais do que nunca (podem crer que pesou e muito) o futebol português passou a ter nos estádios muito mais público feminino. É, no entanto, sublinho, muito difícil mudar o que a prática de anos e anos tornou quase raiz cultural.
Todos os adversários, em Portugal, mas também já muito lá por fora, sabem o que significa defrontar o FC Porto. Sabem que se trata, quase sempre, de defrontar uma grande equipa, jogadores com mentalidade ganhadora muitíssimo acima da média e uma bravura inexcedível, reveladores daquela ambição que qualquer adepto aplaude de pé, mas, também, nenhum responsável do FC Porto o pode negar, com uma forma de competir que não recusa o recurso a ‘armas menos próprias’ (no sentido figurado, naturalmente) para ganhar mesmo a mais pequena das vantagens.
É bom, no entanto, que se reconheça que uma boa parte dessa cultural tendência portuguesa está longe de ser prática exclusiva do FC Porto; no caso do futebol, sempre foi muito extensível, e durante muitas décadas, fez até escola, sobretudo, entre treinadores, que chegavam até a preparar jogadores para, em determinados momentos e em determinados lances, tentarem enganar o árbitro. São disso exemplo muitos famosos ‘mergulhos para a piscina’, como carinhosamente sempre tratámos a teatralidade com que, historicamente, tentavam (e tantas vezes conseguiam) levar vantagem muitos avançados.
Na sequência destas memórias e práticas tão inesquecíveis e tão profundamente enraizadas, o choque em cadeia deu-se, agora, no Estádio do Dragão, porque o Sporting, de tão empenhado que passou a estar na vitória e no sabor dos títulos, tem aparecido igualmente muito disponível para atirar o fair-play pela borda fora e fintar o que tiver de fintar (dentro ou fora das regras) para chegar à vantagem, conseguir os pontos e atingir, de novo, o sucesso que, meritoriamente, e ao fim de outros impensáveis 19 anos, conseguiu no último campeonato.
Pode parecer, admito, que o leão adotou também a velha máxima (fez escola, lá está) de que ‘se não os podes vencer a bem, então não te encolhas e tenta vencê-los, também, a mal’.
Não é necessário recordar todos os momentos em que, no jogo do Dragão, de um lado e do outro, muitos dos jogadores fizeram a vida negra ao árbitro João Pinheiro, procurando ludibriar, enganar, e tirar vantagem da pressão e do conflito. João Pinheiro chamou, por isso, a atenção dos capitães de equipa (Pepe e Sebastian Coates), numa pequena, mas expressiva, conversa pouco antes do intervalo.
É verdade que é impossível ignorar o comportamento (lamentável, e quase sempre generalizado) do banco do FC Porto logo nos primeiros segundos do jogo, quando Matheus Reis fez falta sobre Fábio Vieira, e viu imediatamente, como se impunha, o cartão amarelo. Há muito inaceitável, o inquestionável comportamento intimidatório e pressionante da larga maioria dos elementos que compõem o banco do FC Porto, passou, sobretudo esta época, a ser algumas vezes seguido por muitos dos elementos que compõem o banco do Sporting. E o resultado é o que se tem visto.
Não devo, porém, deixar em claro dois momentos que me pareceram decisivos para tudo o que acabou por se viver, lamentávelmente, nunca é demais afirmá-lo, após a conclusão do jogo do Dragão - e a única boa notícia é que na Primeira Liga não me lembro, com sinceridade, de ver, em pleno relvado, o que vi agora, com a dimensão do que vi agora, envolvendo tanta gente como vi envolver agora, num jogo com o impacto do q ue vimos agora.
Mas os dois momentos a que faço, agora, referência, muito significativos, creio, no terrível choque em cadeia com que se concluiu o clássico da última sexta-feira, acabaram por ter, não protagonistas do lado do FC Porto, mas sim do Sporting.
O primeiro momento: aquela surpreendente correria de um dos adjuntos de Rúben Amorim até à área do Sporting, bem junto à baliza, para dar, visivelmente, instruções ao guarda-redes Ádan e, presumo, aos defesas da equipa, relativamente à estratégia a seguir naqueles instantes finais da partida. Esse adjunto (Carlos Fernandes) seria expulso pelo árbitro. Como o árbitro tinha outra ‘fogueira’ para acalmar e virou as costas, o adjunto de Rúben Amorim, mesmo depois de expulso, manteve-se a dar instruções a Ádan, e chegou mesmo a entrar no terreno de jogo, sob o olhar incrédulo, dos jogadores do FC Porto.
O segundo momento: Feddal, que estava fora das quatro linhas a receber assistência, aproveitou a deslocação do árbitro até ao lado contrário da baliza, onde expulsou o adjunto de Amorim, para, imagine-se, atirar-se, é o termo, para dentro do campo e impedir que João Pinheiro pudesse retomar, de imediato, o jogo, como queriam (e muito protestavam, com razão) os jogadores do FC Porto, fortemente motivados pela crença de que, mesmo nos poucos segundos que pudessem faltar jogar, ainda poderiam chegar ao golo da vitória e ao orgulho de bater o atual campeão nacional.
Se juntarmos a isso o fervoroso e intenso protesto de Pepe (ao jeito, tão conhecido, de Pepe) na defesa de uma alegada falta para penalti cometida sobre ele por Palhinha (e não creio que Pepe tivesse razão), e o ambiente verdadeiramente escaldante nas imediações da baliza leonina, fica um pouco mais fácil de perceber como tudo, tão facilmente, se ‘incendiou’ e veio a descambar como descambou.
Quanto ao árbitro, foi um herói, ao contrário do que ouvi e li. João Pinheiro cometeu a proeza de não mostrar durante o jogo qualquer cartão vermelho direto a jogadores, e teve o discernimento de o mostrar, e bem, por seis vezes naqueles intermináveis minutos após o jogo. Mas podia (e devia) ter mostrado mais dois (se tivesse sido bem auxiliado); a Matheus Reis e Otávio.
Sobre o que se viu, e ouviu, o presidente do Sporting fazer e dizer, ainda a mesma e única palavra: lamentável! Nunca deveria o líder leonino ter ocupado o lugar do treinador na sala de imprensa; e não deveria (por mais razão que tivesse) ter dito o que disse, lançando ainda mais gasolina para o incêndio, ao acusar, como acusou, o presidente do FC Porto e o seu magistério de mais de 40 anos à frente do clube.
A um líder (Varandas não é, evidentemente, o único a falhar, mas Varandas é dos poucos que pareciam justificar alguma esperança na mudança) pede-se serenidade, responsabilidade e sensatez, muito em especial na hora de conflitos. Não era o lugar nem o momento para falar. Mas não resistiu mais uma vez, afinal, a ser igual a muitos dos que condena. Por último, caro presidente do Sporting, avaliar, como negativamente avaliou, a arbitragem de João Pinheiro pela errada amostragem de UM cartão amarelo, santo Deus, não lembraria nem ao mais pintado dos diabos. Ou esta gente está toda a ficar perigosamente louca ou sou eu que já estou verdadeiramente a mais em todo este filme!
PS: Excecionalmente, escreverei domingo sobre a semana europeia.