O dia em que fomos todos Flamengo
Por favor, parem de chamar a Fábio Silva «o miúdo 125 milhões». É, simplesmente, ridículo
1 Eu, em termos brasileiros, sou Corinthians - o Timão, o equivalente lá do FC Porto daqui, sendo o Flamengo o Benfica e o Fluminense o Sporting. Mas sábado passado, como todos os portugueses, fui Flamengo e sofri do primeiro ao último minuto pelo Mengão. (Enfim, todos, não: um amigo meu benfiquista confessou-me que não viu o jogo pois que esteve antes a seguir o Vizela-Benfica para a Taça, à mesma hora). A razão pela qual eu e tantos outros milhares ou milhões de portugueses estivemos colados ao ecrã para seguir o jogo no distante e surreal Estádio Olímpico de Lima, que parece enxertado na cratera de um vulcão, tem um nome, um nome próprio: Jorge Pinheiro de Jesus.
Foi por ele, pelo seu triunfo, que eu torci. Não por ser seu admirador indefectível (sou admirador, mas não indefectível), mas sobretudo por uma coisa: a dignidade com que ele se portou na hora da adversidade, quando, aos comandos de um Sporting moribundo e sabotado por dentro às mãos do seu presidente e das claques dos valentões agora em julgamento, se manteve junto da equipa e dos jogadores, não perdendo a face nem a compostura quando tudo à roda já ardia na indecência. Só por isso, se mais não fosse, Jorge Jesus bem mereceu esta inesquecível festa brasileira. Mas também, e conhecendo muito bem o Brasil e os brasileiros, sei muito bem o que estas conquistas de um português à frente do maior clube brasileiro representam para o resgate do orgulho de tantos e tantos emigrantes pátrios, ao longo de décadas olhados com desprezo e sobranceria pelos nossos declarados irmãos (e que, para sermos justos, nós retribuímos muitas vezes, aqui).
2 Ao contrário do que disse Jorge Jesus, a final de Lima não foi um jogo ao nível de uma final de Champions. Nem sequer ao nível de um qualquer jogo de Champions. Nem, na verdade, podia sê-lo: a Libertadores é disputada por clubes de duas potências futebolísticas mundiais, Brasil e Argentina, mais duas potências médias, Uruguai e Colômbia, mas desfalcados de todos os seus melhores jogadores, que estão na Europa; a Champions, por seu lado, é disputada por clubes de quatro potências mundiais, Alemanha, Itália, Espanha e França, mais diversas potencias médias, como Portugal, Croácia, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Rússia, etc, reforçados com todos os melhores jogadores de África, Ásia e Américas. Assim que alguém brilha na Libertadores... acaba na Champions. A final de Lima foi um jogo mau, chato e feio até ao minuto 88, disputado entre uma equipa, o River Plate, cuja estratégia consistiu apenas em não deixar que houvesse jogo e cujos jogadores confundem futebol com kung fu, e outra equipa, a de Jorge Jesus, que até 5 minutos do fim nunca mostrou a dose mínima de crença e coragem que uma final requer para ser vencida e não apenas disputada. Valeu que Gabigol e os deuses vieram em auxílio, não de quem mais se atreveu, mas de quem menos fugiu.
3 Se o clube o mandar pôr um fato e uma gravata para assistir ao jogos ou viajar com a equipa, Jorge Jesus obedece porque recebe 6 milhões por ano para cumprir o que o clube manda. Mas para receber a medalha de cidadão honorário do Rio de Janeiro, a Prefeitura da cidade não estabelece nenhum dress code - o que não implica que o condecorado possa ir vestido às três pancadas como se fosse para um almoço de amigos. Ao comparecer na cerimónia vestido de jeans, sem gravata e sem ter sequer pedido a alguém que lhe tivesse preparado algumas palavras adequadas para dizer, Jorge Jesus deu uma prova de desconsideração e desrespeito pelo local, pelo acto e pelos anfitriões. Foi pena, não é todos os dias que um português é feito cidadão honorário do Rio.
4 Segundo dizia ontem A BOLA, a sempre adiada renovação do contrato de Bruno Lage não está dependente do resultado que o Benfica fizer logo à noite contra o Leipzig. É apenas uma questão de «agenda», a dificuldade de conseguir conciliar a agenda das partes envolvidas e que deve continuar, uma vez que há jogos calendarizados para as próximas semanas até ao Natal e depois é Natal e Ano Novo. Pois, como se compreende, todos os dias, de manhã à noite, são ocupados a preparar os jogos e mesmo as duas semanas de pausa que houve agora foram intensamente ocupadas a preparar a dificílima (então não foi?) deslocação a Vizela. E nada disto tem que ver com os resultados na Champions ou com o miserável futebol que o Benfica anda a exibir por esses campos fora...
5 Ontem também, o benfiquista meu colega de coluna, António Bagão Félix, dedicou-se a uma exaustiva tentativa de explicação do mistério que, neste momento, ocupa todas as conversas de bastidores: porque anda a SAD do Benfica a comprar-se a si própria? E ele, com propriedade, elenca as várias teorias que circulam: para fortalecer uma posição accionista que, mais tarde, venderá parcialmente a um potencial parceiro estratégico, com lucro (a hipótese boa); para tentar assim afastar investidores indesejáveis (a hipótese absurda); ou dar dinheiro a ganhar a alguns investidores particulares (a hipótese má). Tudo lido e meditado, porém, o mistério permanece. Claro que poderia ser esclarecido se a SAD quisesse, mas limitam-se a dizer que se trata de um «negócio oportuno». Mesmo não sendo contas do meu rosário neste caso, a transparência das SAD deixa-me sempre boquiaberto.
6 Lá por cima, na minha, foi anunciado que o miúdo-revelação Fábio Silva passou a ser representado por Jorge Mendes e automaticamente também passou a ter uma cláusula de rescisão de 125 milhões. Passe-se por cima do pormenor saloio dos 5 milhões a mais que João Félix, para atentarmos no essencial: o rapaz acaba de fazer 17 anos e de se estrear episodicamente na equipa principal e a SAD do clube já vê nele a hipótese milagrosa de conseguir com a sua venda resgatar anos de gestão financeira ruinosa. Para depois poder voltar ao business as usual. Tão brilhante plano de gestão, envolvendo a inteligente capitulação na guerra com Jorge Mendes, só tem duas dificuldades que não me parecem pequenas. Uma, é que mesmo Jorge Mendes, depois do flop Renato Sanches, do inêxito de André Silva e do ainda muito duvidoso sucesso de João Félix em Madrid, não está em situação de arriscar um falhanço com a venda de novo jogador português por uma fortuna, que depois se venha a revelar sem sentido. E a outra dificuldade é que Fábio Silva, como já escrevi, é sem dúvida um jovem cheio de garra e de vontade, generoso no jogo e com bom toque de bola, mas sem ter revelado até agora nada daquilo que faz um ponta-de-lança valer 30, 20 ou mesmo 10 milhões. Quanto a valer 125, bem, isso valeria hoje um Van Basten. Compreendo o efeito de propaganda pretendido com este anúncio, mas, por favor, parem de lhe chamar «o miúdo 125 milhões». É, simplesmente, ridículo.
7 Li que para o jogo decisivo contra o Young Boys, Sérgio Conceição vai dar a baliza a Diogo Costa, mantendo Marchesín no banco - ainda de castigo por ter ido ao jantar de anos da mulher de Uribe. Já disse o que penso sobre esse castigo - exagerado, deslocado e prejudicial ao clube. No caso, estamos a falar de um dos melhores e mais importantes jogadores na equipa actual e deixá-lo de fora é correr um risco desnecessário. Quanto a Diogo Costa, não é a sua valia que está em causa e que eu, aliás, desconheço, embora me pareça um guarda-redes promissor. Mas apenas o vi jogar três vezes - contra o Coimbrões, o Boavista e o Setúbal - e, se bem que não tenha sofrido qualquer golo, também tudo o que teve para fazer nesses três jogos foi desfazer um cruzamento a soco. É pouco para ser lançado às feras num jogo em que se decide a continuação na Europa.