O dedo e a ferida
A propósito do dedo em riste em Famalicão, carta de Pedroto a Sérgio Conceição
Meu caro Sérgio Conceição:
DAQUI, do alto da minha eternidade, decidi contar-lhe histórias da minha vida de treinador que mostram por que eu era como era - vida que começou no FC Porto, nas suas camadas jovens, ao entrar da década de 60. Cheguei e exigi que se criasse cantina para dar refeições diárias aos miúdos pobres que comiam mal em casa ou às vezes nem comiam. A resposta foi darem-me um frasco de vitaminas para distribuir por eles, não aguentei: ao fim de dois meses pedi a demissão. Apareceu a Académica a contratar-me. Tudo correu bem até que alguém escreveu num jornal que perdera jogo por causa da minha costela portista - e ao encontrá-lo num café, preguei-lhe valentíssima tareia, saí de Coimbra. (Era como você, explodia com facilidade por causa do fogo na alma.)
No Varzim voltou a escaqueirar-se-me o coração ao ver que ordenados em atraso e luvas por receber atiravam os jogadores à penúria. Um deles revelou-me, em lágrimas, que vendo que, para o almoço, já só tinha arroz com grelos, a mulher, para o animar, lhe dizia que o jantar seria mais rico: seria grelos com arroz - e, revoltado, fui-me embora.
O FC Porto foi buscar-me. Ganhei a Taça de Portugal de 1967/1968 - e na época seguinte, estando a lutar taco a taco com o Benfica, antes do jogo do título, telefonou-me o presidente a dizer que a viagem de avião que queria para a equipa ficava mais cara 7000 escudos, que de comboio se iria para Lisboa. Respondi-lhe, que não podia fazer a guerra a poupar balas e gasolina - abriu-se a escaramuça entre nós que levou ao meu despedimento, antes do campeonato se fechar… O que me levou a contar-lhe o que lhe contei foi eu ter-me visto no seu dedo em riste em Famalicão, vendo nele apenas o desejo a arder-lhe dum FC Porto que não quer a poupar em balas e gasolina - não lhe vendo ferida que possa estar, escondida, em insinuações (esquizofrénicas) em torno de comissões (ou assim…)
Deste seu, José Maria Pedroto.