O Chefe chega lá acima

OPINIÃO06.09.202003:00

Recordar histórias de sátira 
política neste Intervalo.
Histórias do Senhor Kraus,
Pequenos apontamentos
e o epílogo.
O Chefe chega lá acima.
Onde sempre quis chegar. 

 

Leituras

1 - Leituras profundas... - murmurou o senhor Kraus.0000  ooO político não lê livros, quando muito lê os seus títulos. Faz o mesmo com as pessoas.

O povo

2 - Alguns políticos entendem a palavra ‘povo’ como se fosse um seu pseudónimo - disse o Senhor Kraus. ooDepois murmurou: democracia! E calou-se. Depois disse ainda:
- Numa estatística optimista, se o homem do povo decidir quatro vezes com a sua inteligência e outras quatro vezes aproveitando o acaso, terá quatro possibilidades de acertar.
O vizinho, o senhor Henri, concordou com a cabeça.
Não seja cínico, disseram ao Senhor Kraus.
 
Ser razoável

3 - Alguns vizinhos cruzavam-se com o senhor Kraus e comentavam:oo oo- Tenho lido as suas crónicas no jornal...
Mas antes que pudessem continuar, o senhor Kraus sorria, agradecia o cumprimento com um leve movimento da cabeça, murmurava metade de pequenas palavras e avançava: Estou atrasado!, desculpe.
- Pelo menos a pistola - disse ainda, no entanto, naquele dia, o senhor Kraus, já afastado, e quase aos gritos. - Ser razoável é não utilizar a espada em pleno século XXI!

Epílogo

4 - O Chefe e os seus Auxiliares. Muito subiram eles.o ooO chefe sempre a ser elogiado, bajulado.oooo ooO Chefe e os dois Auxiliares estavam já na varanda do 4º andar, de pé, frente ao frio. Um dos Auxiliares estava doido, em júbilo, quase saltava:
- Veja, Chefe, a sua expiração. Está extraordinária, vê esta cor?! - o Auxiliar apontava com o seu dedo indicador para o jacto de dióxido de carbono que saía da boca do Chefe. - É magnífico, magnífico! Que cor linda!
O Chefe sorria, mas parecia-lhe que o Auxiliar começava a exagerar: que raio, ele era o Chefe, mas os seus pulmões e todos os canais responsáveis por fazer sair o ar lá de dentro eram iguais aos de qualquer ser humano. Sou um homem como os outros, pensava. No entanto, confiava no Auxiliar. Se ele dizia que a sua expiração estava particularmente magnífica era porque tal era verdade. O Chefe inclinou-se então para observar mais de perto o ar que saía da sua boca.
- Sim, é invulgar, mas...
- Veja mais de perto - disse o Auxiliar - incline-se; de perto é que se vê bem.
O Chefe ia contendo a sua alegria - realmente, que coisa, até o meu ar se destaca, que coisa extraordinária! - e com a barriga já encostada à parte superior da balaustrada da varanda, continuava a inclinar-se. Queria ver de perto o que saía do mais profundo de si próprio.
- É isso - prosseguiu o Auxiliar - quando a sua expiração vai de cima para baixo, aí qualquer coisa sai de invulgar... uma invulgar autoridade!
Estavam, como se disse já, no quarto andar. E foi então que aconteceu aquilo.
O Auxiliar, como estava a meio de um elogio, não foi a tempo de evitar a tragédia. É que o Chefe queria mesmo ver como era o aspecto do seu ar expirado quando saía na vertical, de cima para baixo. A sua expiração tão elogiada. Inclinou-se, então, mais para a frente. E ainda mais. E mais. E mais. E mais.
Até que exagerou e não teve tempo de voltar para trás.