Não há condições para terminar a época
1À míngua de acontecimentos, golos, minutos, resultados e outras coisas do género, o jogo social Placard bem se poderia basear nas próximas semanas nas previsões, aspirações e palpites que medeiam entre a quarentena e o retomar da gesta desportiva. Até porque oscilamos entre o nada e o tudo, entre o que não vai suceder e o que se tem vontade de ver voltar a acontecer. Todos palpitamos, todos opinamos e todos desejamos o regresso desportivo. Compreensivelmente, sem dúvida.
Tenho lido milhentas soluções para este inédito momento (não) desportivo. Todas elas com defensores e objectores. Nos últimos dias sobressaiu uma abordagem promovida, creio, pelo presidente da Liga de Futebol Profissional, que me parece algo peregrina, qual seja a de haver uma espécie de cerca sanitário-futebolística - o Algarve -, onde decorreriam, em jeito acelerado, as últimas dez jornadas da primeira divisão. Tudo sem espectadores, tudo - suponho - com transmissões televisivas em cadeia sequencial para que ninguém e nada ficassem de fora. Tudo forçado para que, em jeito de salsicharia em série, se terminasse a prova e houvesse vencedores e vencidos.
Imagino o entusiasmo transbordante de tão prestimosa maneira de realizar quase um terço do campeonato. Imagino até o campeão a festejar numa qualquer marina algarvia, sem pessoas (para manter a coerência), ainda que uns tantos fossem ao Marquês de Pombal em Lisboa ou aos Aliados, no Porto, consoante o campeão encontrado. Uns com máscaras e outros sem elas (se calhar, ainda no tempo da polémica que por aí anda das máscaras do põe-ou-não-põe), com cotoveladas à discrição e distanciamento social controlado por uma qualquer claque.
Não sei se a segunda divisão também terá direito a uma cerca de segunda categoria. Partindo do princípio da limitação hoteleira de um hotel para cada equipa (36 no conjunto dos dois escalões!) e da escassez de estádios existentes no Algarve, o confinamento desta divisão iria para outra zona do país. Mas qual?
E os treinos? Separados por equipas, com certeza. Onde? Em que condições? Em fila ordenada ou por moeda ao ar? Em turnos de 24 horas?
E os árbitros? E os VAR? E os delegados? E outros ainda? Confinados ou refinados? Num hotel isolado ou tudo aos molhos?
E - the last but not the least - os jogadores? Treinos com todos os cuidados, roupeiros minuciosos, tudo por grupos separados e, a seguir, todos juntos nos jogos, sabendo-se que o futebol é um desporto de contacto e de confrontos físicos? Faz sentido expor atletas ao risco pandémico, cuja prevenção deve constituir a mais séria preocupação, antes de todas as outras?
Obviamente não ignoro o grande problema que pode resultar dos operadores de telecomunicações não pagarem o que está contratualizado nestes meses (quantos virão a ser?) de paralisação forçada das competições. Também não ignoro a má prática de dar as receitas futuras como garantia de financiamento de alguns clubes, o que levou a incluir nestas operações os meses agora sem transmissões. Por isso, importa chegar a um entendimento entre todas as partes, de modo a minimizar, sem assimetrias injustas, as consequências negativas da situação. Contudo, não creio que o internato compulsivo de 30 por cento da competição seja a solução num desporto chamado rei, que o é muito por causa dos que sempre o acarinharam indo aos estádios. Constituirá, quanto muito, uma solução frágil, que a acontecer vai deixar marcas no futuro. Dispensar o que é indispensável é negar a alegria, o entusiasmo, a festa que são consubstanciais ao futebol. Uma coisa é fazer-se um jogo em casa ou fora de casa sem público (como aqui escrevi a semana passada, situação que sempre foi encarada como castigo ou punição para o clube infractor!), outra coisa bem diferente é enfiarem-se oitenta jogos (ou cento e sessenta, se considerarmos as duas principais divisões) numa correria sem público, sem entusiasmo, sem nada, afinal.
2Bem andou a Federação Portuguesa de Futebol em dar por terminadas todas as provas que estão sob a sua alçada nos escalões jovens. Bem andaram os clubes de andebol em não concluir a época, o que certamente irá suceder com as restantes modalidades. Claro que estou consciente que, sobretudo, a primeira divisão tem outra escala, quer desportiva, quer financeira, e que, como tal, a suspensão da prova gera consequências nefastas. Mas, na minha opinião, tal não se resolve por uma varinha mágica de um torneio clausura forçado, desenxabido, além de implicar uma nova temporada cheia de constrangimentos. Se se entrar pela próxima época adentro, entre competição nacional, taças europeias e selecções, é como tentar meter o Rossio na Betesga.
De uma coisa estou certo: a de quanto mais tempo se estiver na expectativa e na mera gestão de hipóteses quanto ao fim da época, piores consequências advirão da impossibilidade de planeamento e de capacidade de ultrapassar problemas com vista ao futuro desportivo, financeiro, transaccional. Nestas alturas, lembro-me sempre de que uma hipótese é uma coisa que não é, mas que a gente supõe que é para ver o que seria, se fosse.
No plano escolar, não sabemos, ainda, como ficará o resto do ano lectivo em curso. Também aqui estará em causa a apertada calendarização e não se podem desvalorizar as consequências negativas da suspensão prolongada de aulas presenciais. Nem os Jogos Olímpicos de Tóquio (por acaso, até terminariam já depois da data UEFA para o fim da época de futebol…) puderam aguentar a ideia de um sim-não-talvez. Estes são apenas dois exemplos que testemunham a gravidade da situação que não acaba numa definida data x, por fantasia ou milagre. É que tudo estará sujeito ao mais importante: a saúde das pessoas e da sociedade como um todo. E, no futebol, como bem disse Joaquim Evangelista, os jogadores não podem ser cobaias. Aliás, se bem nos recordarmos, no nosso campeonato, primeiro falou-se de um adiamento por umas poucas semanas. Depois começar-se-ia a treinar em Maio para jogar em Junho. Agora já se propõe jogar em Julho. Nada disto é favorável à racionalização das decisões a tomar pelos clubes, por mais dolorosas que possam ser.
3Lá fora, já se veem acordos, ainda que às vezes mais ou menos forçados, para a redução salarial no período de inactividade. Nada diferente do que está a acontecer infelizmente em quase todas as outras actividades económicas. Por cá, tudo na mesma. Será o futebol uma ilha isolada no meio de uma situação social tão dramática? Será que o lay-off, na sua estrita expressão de lei ou na mais ampla vontade das partes e adaptada às especificidades dos clubes, não deve ser considerado? Li que alguns clubes nem admitem a hipótese de redução temporária do valor mensal dos contratos. Será que estão assim tão folgados financeiramente que se podem dar a esse luxo? Será que não são capazes de discernir que, entre o nada fazer agora e o inviabilizar o clube no próximo futuro, a fronteira é mínima? Por outras palavras, sendo o custo salarial a parte de leão dos custos operacionais totais - em alguns clubes bem acima dos 60% ou 70% dos proveitos correntes - não agir agora é uma forma destrutiva de encarar o futuro das SAD? De que estão à espera? Dos outros, evidentemente, à boa maneira portuguesa. Marcação clube a clube, a ver quem avança primeiro. É aqui que o papel da Liga e do sindicato dos jogadores deverá ser decisivo para encontrar um modus faciendi que não faça desta questão mais uma competição, mas sim uma forma de cooperação.
P.S. Depois de o esloveno presidente da UEFA Aleksander Ceferin ter referenciado 3 de Agosto como limite para se concluírem as competições nacionais, um comunicado diz agora que ele não disse o que disse e admite a realização de partidas em Agosto. Um carrossel de datas hipotéticas de uma instituição cheia de dinheiro mas carente de liderança. No comunicado há, contudo, um ponto que importa enfatizar: «Prioridade é preservar a saúde pública.» Obviamente...