Mas viva o futebol!

OPINIÃO22.05.201804:00

1 - Era inevitável que José Pacheco Pereira não perdesse uma oportunidade como esta de confundir a árvore com a floresta  e, a propósito do estado de loucura auto-induzida em que mergulhou o Sporting, aproveitar para soltar cá para fora  todo o seu desprezo e ódio pelo futebol. Fê-lo sexta-feira passada, na sua coluna do Público, onde não deixou pedra sobre pedra: dirigentes, jogadores, comentadores, comunicação social, governantes, adeptos. Juntou-se assim a outros, como Rui Rio, que nunca esconderam que têm do futebol aquela ideia feita de que se trata do ópio do povo, responsável em grande parte pela alienação, deseducação cívica, violência colectiva, marginalidade organizada e, de um modo geral, um mundo à margem da lei tolerado pelo poder político, por razões de fraqueza institucional e de popularidade fácil. Quando os oiço, lembro-me sempre de o Manuel Alegre me contar que, quando logo a seguir ao 25 de Abril, chamado a desempenhar funções, creio que de secretário de Estado da Comunicação Social, uma das primeiras coisas com que se deparou e a que teve de se opor foi à exigência revolucionária de que os relatos dos jogos de futebol da Emissora Nacional (entretanto rebaptizada RDP) fossem abolidos porque distraiam o povo das tarefas revolucionárias. A ideia continua a ser a mesma e os argumentos são os mesmos de sempre. Reconheço que é, por vezes, um discurso tentador e nem sempre fácil de rebater, até porque do lado de cá - do lado dos que amam este desporto incomparável - os nossos argumentos são muito mais feitos de emoção do que de razão. Há, no discurso de Pacheco Pereira e outros, argumentos, de lei e de justiça, com que eu concordo - nomeadamente, aquilo que tem que ver com a inadiável domesticação das claques organizadas de desordeiros e malfeitores que tornam o futebol um lugar inabitável ou com a responsabilização de certa comunicação social pela criação de um clima de incitamento ou consentimento do ódio, do anti-desportivismo e da livre promoção da demagogia e dos demagogos, que estão directamente na origem destes últimos acontecimentos vividos no nosso futebol e que o cobriram, a ele e a todos nós, de vergonha, aqui e além-fronteiras.

2 - Deem-se as voltas que se quiserem ao texto, Bruno de Carvalho é pequenino de mais e ridículo de mais para, por si só, ter conseguido causar tantos danos ao seu clube, ao futebol português e até à imagem do país. Se o conseguiu, é porque beneficiou de uma imensa teia de compreensões, tolerâncias e cobardias que o deixou medrar até ao destino natural e aterrador onde sempre terminam os projectos aventureiros dos populistas. Mais do que o pequeno e ridículo ditador, merecem ser responsabilizados os que o criaram e apoiaram, os que lhe deram a credibilidade ética a que ele nunca chegaria com um curriculum em que apenas constava a filiação numa claque, os que insistiram em não ver o que deviam ter visto desde a primeira hora, os que trocaram o dever da verdade e das evidências pela ilusão dos triunfos obtidos sob qualquer forma. A esses, recomendo a leitura de um livro de referência na matéria: Os estalinistas, da jornalista francesa Dominique Desanti, onde ela conta como uma geração de comunistas e intelectuais franceses insistiu em negar todas as evidências dos crimes estalinistas, mesmo quando viam os seus camaradas e amigos russos desaparecerem um a um, acusados de espiões americanos. Num segundo grupo de apoiantes, com piores responsabilidades ainda, estão os que o pequeno ditador agora acusa, e com razão, de traidores: Ricciardi e Álvaro Sobrinho, os responsáveis pelo seu apregoado milagre de gestão financeira, mas já com provadas experiências do doce prazer da traição; o bombeiro-incendiário Marta Soares, que assina comendador no fim dos comunicados, um salta-pocinhas muito estimado pelas televisões; Miguel Relvas, que gosta de assinar doutor e que só se lembrou de se demitir do Conselho Leonino à 26ª hora, a tempo, julga, de também se apresentar como presidenciável. Esses, estiveram no pior de tudo: criaram a criatura, deram-lhe asas, dinheiro, tribuna, modo de vida, e só quando o viram já sem ninguém ao lado é que finalmente desertaram e logo passaram a adversários e até, pasme-se, a símbolos de honestas alternativas - pobre Sporting, que tais alternativas tem! E, num terceiro grupo, vamos ainda encontrar uma amálgama de notáveis ou não tanto, que, por conveniência, por oportunismo ou por simples medo, calaram e consentiram até ao fim, até que a vergonha alheia corresse o risco de se transformar em vergonha própria. Na verdade, creio que, do princípio ao fim, Bruno de Carvalho só teve um apoiante sincero e desprendido, que foi Sousa Cintra. Mas esse, eu conheço-o, porque também tenho o prazer de o ter como amigo: conheço a sua generosidade, que por vezes se confunde com ingenuidade, e sei que jamais larga um amigo.

3 - Se tivesse algum espelho em casa, e não apenas um reflexo da sua insaciável vaidade, o pequeno ditador meditaria na inacreditável humilhação de ser escorraçado da final da Taça porque o Presidente da República não o queria na tribuna de honra e a sua própria equipa não o queria no relvado. Se conseguisse que um laivo de inteligência se sobrepusesse ao seu demencial ego, teria ido à final misturado entre os simples adeptos, em lugar de pretender marcar presença com mais um extenso monólogo de véspera sobre si próprio e nova incursão no facebook para acompanhar o jogo em directo, qual voz do Além. Mas isso era exigir-lhe demais. E a verdade é que não fez lá falta alguma. Apesar dele, apesar dos lastimáveis acontecimentos da semana, apesar dos requiems ao futebol decretados por Pacheco Pereira e os demais, o Jamor foi uma festa do futebol e mostrou como, apesar de tudo, a sua grandeza por vezes ainda ofusca as suas humanas misérias. Aquele miúdo do Sporting a chorar a derrota no final, aqueles adeptos adultos do Sporting a chorarem a derrota, o Rui Patrício a chorar a derrota e a ser abraçado pelo Quim, as lágrimas de alegria dos vencedores, as alas abertas pelos jogadores do Aves aos do Sporting e a Jorge Jesus, a felicidade dos habitantes de uma vila de 8.000 almas, o jogo corajoso do Aves feito para vencer e fazer história, a felicidade de José Mota e de um guarda-redes com 42 anos, a força de vontade de um onze destroçado, como o do Sporting, para ainda tentar ir em busca do empate, contrariando um destino traçado pelo seu presidente e pela sua guarda pretoriana de inimigos do clube e do futebol, tudo isso é o que finalmente ficará de uma final de Taça em tudo diferente e marcante. Viva o Desportivo das Aves e os seus jogadores, treinadores e dirigentes! Viva os jogadores, os treinadores, o médico do Sporting, pela dignidade de que deram provas, não desertando, e os sportinguistas que ficaram até ao fim no Jamor! E viva o futebol que de repente se tornou humano, contra a desumanidade das bestas que, infelizmente, também o habitam! Os que estiveram no Jamor disseram-nos mais uma vez, aos que estamos do lado de cá - do lado dos que amam este fantástico desporto que é o futebol - que nós não estamos errados. Este é o jogo planetário que leva o sonho, a esperança e o deslumbramento a milhões de crianças e a milhões de adultos que podem voltar a ser crianças durante o tempo de um jogo, e que,  tantas  e tantas vezes, de outra forma, não teriam maneira outra de sonharem nem coisa outra que os deslumbrasse. O resto, afinal de contas, é coisa pouca: há-de passar. Mas o futebol não passará nunca.