Mais medalhas do que medalhados
Marés de medalhas
O povo, na sua infindável sabedoria, usa dizer que «há mais marés do que marinheiros». Verdade insofismável. Até porque também muitas vezes se diz que somos um povo de marinheiros. O que, obviamente, não corresponde à realidade. Seja como for, será avisado não extrapolar tal lição para outros domínios aparentemente análogos. Por exemplo: ainda na última semana se provou - ao invés do que toda a gente pensava - que pode haver mais medalhas do que medalhados. Pelo menos foi isso que consegui perceber da última edição dos campeonatos europeus de ciclismo em pista coberta. Vejamos: mandámos lá para a Bulgária três rapazes (sendo que dois deles são irmãos gémeos) e uma rapariga. Concluída a competição, regressaram a casa com cinco medalhas. Mas muito criteriosamente divididas entre si, não como quem, terminada com glória a jornada bélica, se atira aos despojos dos vencidos. Vendo mais de perto: o nosso já falado Iuri Leitão trouxe consigo três peças, sim, mas teve a esmerada atenção de, qual colecionador minucioso, escolher todas diferentes, a lembrar, uma de ouro, uma de prata e outra de bronze. Como facilmente se pode então concluir, não se tratou de nenhum açambarcamento, não foi só trazer por trazer, ninguém de boa-fé poderá agora, portanto, dele dizer que teve mais olhos do que barriga. Já os gémeos Oliveira deram um magnífico exemplo de excelsa fraternidade, pois uma das medalhas foi conquistada rigorosamente a meias. Falta só dizer que tais feitos em muito se devem a Gabriel Mendes, o selecionador nacional.
Noções de nações
Como se já não bastassem os estádios vazios, foram agora interrompidas as competições entre clubes. Porquê? Ora, por causa da Seleção Nacional, acrescente-se. Já tínhamos um Campeonato do Mundo, isto é, aberto ao mundo todo (que, aliás, note-se, não é bem a mesma coisa do que todo o mundo), como igualmente já tínhamos um Campeonato da Europa, isto é, aberto a toda a Europa (incluindo Israel, que não consta fazer parte dos mapas do nosso continente). Pois tínhamos, pois tínhamos. Todavia, tais torneios não são, manifestamente não são, suficientes. Porque entre eles fica um espaço vazio - e como a Natureza tem horror ao vazio, havia que o preencher. Assim, se era imperioso instituir uma nova competição, pois então instituiu-se uma nova competição. Para quem? Ora essa, não se está mesmo a ver? Para o mundo inteiro? Não. Para a Europa? Também não. Então? Então houve quem, qual génio Aladino saído da lâmpada mágica, iluminasse a cidade e o mundo com esta espantástica revelação: é absolutamente imperativo instituir uma Liga das Nações. Das Nações, repita-se. Não dos povos. Não dos Estados. Não dos países. Sim, das Nações. Fiat lux! E fez-se luz! Fez-se mesmo luz! E assim nasceu a Liga das Nações. Nasceu, sim, mas com duas regras axiomáticas, verdadeiros dogmas. Assim, estatui a primeira que os naturais dessas nações não as podem venerar, sob pena de serem acusados de nacionalistas. Ora isso não pode, evidentemente, jamais, ser tolerável, pelo que tal nefanda prática acarretaria a imediata, implacável e inexorável excomunhão, perdão, expulsão dessa Nação. Quanto à segunda regra, limita-se, muito singelamente, a obrigar que todos os participantes sejam mandatoriamente tratados como Nações, mesmo que o não sejam, de todo ou no todo. Temos assim que estados sem Nação, nações sem Estado, Estados multinacionais e Nações pluri-estaduais devem ser todos objecto do mesmo tratamento. A bondade normativa é cristalina: acabam-se as confusões e passam todos a ter o mesmo nome. A organização da Liga das Nações, porém, do alto da sua magnifica magnanimidade, permitiu-se consentir que as concorrentes possam ser também chamadas por outra designação alternativa ou complementar. Desta sorte, a Holanda pretende ser invocada apenas por Países Baixos (eles lá saberão porquê), enquanto outras, como por exemplo a Espanha e a Itália, já tornaram oficial e publicamente a sua preferência no sentido de as suas equipas nacionais continuarem a ser conhecidas como La Roja e Squadra Azurra. Tanto quanto parece, onde as coisas estão mais divididas é no país universalmente chamado Portugal mas constitucionalmente nomeado como República Portuguesa. Ao que consta, as coisas estão assaz confusas entre os apologistas da manutenção da Turma das Quinas e os contestatários que proclamam a mudança para O País dos Rúbens, por deferência aos três atletas da nossa Seleção que têm tal nome próprio (seguidos dos apelidos Dias, Neves e Semedo). E também daquele que, de momento, se afirma cada vez mais como o melhor treinador na República Portuguesa: Rúben Amorim!