Heróis, sim!

OPINIÃO04.06.202107:00

As «formiguinhas» de Rui Jorge e a «formiguinha» João Almeida, que tanto voltou a trabalhar no Giro

AS formiguinhas de Rui Jorge tanto trabalharam que lá conseguiram o primeiro grande objetivo do Campeonato da Europa de sub-21, ganhar o direito a estarem na final. Nesta invulgar «final a 8» de um Euro que começou a ser jogado em março, na Hungria e Eslovénia, e só regressou aos relvados agora, Portugal acaba, o que não é nada pouco, de deixar para trás dois poderosos adversários, primeiro a Itália (que nos tirou o título em 1994) e esta quinta-feira a Espanha, que defendia na competição deste ano o lugar de campeã da Europa.
É a terceira vez que a Seleção dos profissionais mais jovens chega à final, e a segunda sob o comando do selecionador Rui Jorge, que os adeptos portugueses se terão habituado a admirar pela bondade e integridade do discurso e pelo comportamento discreto, transparente e eticamente irrepreensível com que, talvez desde sempre, se tem movido neste muitas vezes frustrante universo do futebol português.
É Rui Jorge selecionador nacional dos sub-21 há dez anos, o que é absolutamente invulgar, mesmo a nível mundial, e certamente por esse lugar ficará se o deixarem, porque nunca escondeu a sua aversão ao que de pior tem o chamado futebol de primeira linha.
Não o faz isso menos dedicado a uma etapa igualmente importante na formação e preparação de mais jovens jogadores de futebol profissional, que procuram qualificação e valor para se afirmarem ao mais alto nível. Rui Jorge é visivelmente um apaixonado pelo que faz e não quer, pelos visto, fazer mesmo outra coisa, como já publicamente assumiu em ocasiões suficientes e suficientemente afirmativas para não podermos ignorá-lo.
É, por outro lado, evidente que o desafio para Rui Jorge ganha sempre novas e aliciantes dimensões mesmo sem as mais intensas luzes da ribalta e os palcos das principais estrelas. Ele é uma espécie de discreto professor que apenas gosta de se rever no sucesso dos seus (temporários) jovens alunos. Sentindo-se inteiro nesse processo e nunca pela metade!
Alguns deles, que acabam de garantir esta terceira final do Europeu para Portugal, não sendo, a grande maioria, titulares dos seus clubes, já estão ali à bica, e à bica em clubes grandes, que jogam para ganhar títulos, como são os casos de jogadores já chamados a jogar nas primeiras equipas de Sporting, FC Porto ou Benfica, e até mesmo de alguns que já sentiram, e bastante, o cheiro de grandes palcos internacionais, como são exemplos mais particulares os casos de Rafael Leão (AC Milan) ou Diogo Dalot (que tem estado emprestado pelo Man. United ao AC Milan).
Para Rui Jorge, que já enquanto jogador fugia a sete pés de todos os holofotes, o desafio pelo qual se apaixonou e se mantém profundamente apaixonado parece ser o de ajudar a moldar pequenas-grandes joias de talento para o jogo, mas também o de ajudar a moldar personalidades para a vida.
E se, por fim moldadas, essas personalidades puderem revelar-se personalidades com traços semelhantes a alguns dos principais e mais conhecidos traços do caráter de Rui Jorge, então ele, como treinador, e todos nós, como amantes do futebol, não deixaremos também de sair a ganhar, ganhando principalmente Rui Jorge a ideia de poder (e pode mesmo) orgulhar-se de ser (e é, no que me diz respeito) um dos heróis desta nossa vida. Ganhando ou não!

ESTA é ainda uma semana de mais um novo (e sempre especial) destaque para o jovem ciclista português João Almeida, que voltou este ano a estar em grande no Giro d’Itália, como lhe chamam, evidentemente, com enorme orgulho, os italianos, e nos brindou, ele, João Almeida, com outro banho de orgulho num atleta português e na forma incansavelmente empenhada como ele lutou, outra vez, para ser, no fim, um dos melhores.
Pode João Almeida não ser ainda um vencedor, na verdade ainda lhe falta aquele resultado que o coloque na história, mas é muito jovem, tem muito tempo pela frente, e já mostrou ser, pelo menos, um campeão da atitude, porque só mesmo os campeões conseguem sucessivamente competir como João Almeida voltou a competir na edição deste ano do Giro, é verdade que sem o brilho do ano passado (e daqueles magníficos dias em que andou com a camisola rosa de líder da prova…), mas com a mesma nobre determinação e resistência, e a mesma ambição de ganhar a admiração e o respeito de todos não apenas por estar entre os melhores, mas sobretudo por ser… um dos melhores! 

NÃO me esqueço, naturalmente, do que nos deu um Acácio da Silva, por exemplo, esse português de Montalegre que se tornou filho adotivo da Suíça e, sobretudo, do Luxemburgo, onde viveu, e continua a viver, a maior parte do seu tempo, nem esqueço aqueles momentos em que vestiu a camisola rosa no Giro e a camisola amarela no Tour, ele que era, apesar disso, muito mais um corredor de clássicas do que das grandes provas por etapas, e todos nos devemos continuar a lembrar desse extraordinário corredor que foi José Azevedo, que chegou a ser particularmente magnífico em dois Tour de France, como orgulhosamente lhe chamam os franceses (Azevedo foi 6.º em 2002, e 5.º em 2004), e até no Giro, em 2001, que este antigo companheiro do monstruoso Lance Armstrong, concluiu no 5.º lugar.
Mas mais do que aquilo que João Almeida já conseguiu, é pelo modo como o consegue, pela forma como corre, como luta, como domina a resiliência, como refunda as próprias forças, como se atira aos desafios, aos obstáculos e aos objetivos, às vezes solitariamente, sem uma grande equipa, e de modo constante, hoje, amanhã e ainda depois, é verdadeiramente por tudo isso que sou levado a crer (sem qualquer exagero e sem receio de estar enganado…) que Portugal pode estar perto de descobrir em João Almeida, agora sim, talvez o verdadeiro sucessor do grande Joaquim Agostinho, como acabou por descobrir em Cristiano Ronaldo o verdadeiro sucessor de Eusébio da Silva Ferreira, que se tornara, no século XX, o maior de todos os heróis desportivos do nosso tempo, onde evidentemente sempre se incluem os eternos Lopes, Rosa, Fernanda, ainda Mamede ou Livramento…
Não discuto, naturalmente, os méritos de outros grandes ciclistas portugueses, por exemplo Sérgio Paulinho foi medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, e Rui Costa logrou, em 2013, um título mundial de estrada, e o que qualquer deles fez, Paulinho e Rui Costa, não é para todos, e por não ser para todos é que foram os únicos, com as cores portugueses, a consegui-lo.
Mas depois do 4.º lugar no Giro de 2020, voltei a seguir João Almeida no Giro deste ano, e não sendo um especialista, sou há muito, e definitivamente, um apaixonado pelo ciclismo, e bem sei o que voltei a ver de energia, de combate, de ambição, de coragem e de heroico deste jovem nascido nas Caldas da Rainha, agora a caminho de completar 23 anos, que foi mais uma vez de uma bravura absolutamente singular na luta por um lugar entre os 10 melhores de uma grande prova por etapas, onde se inscrevem na história, os maiores de todos os corredores, acabando num francamente bom 6.º lugar final, graças à enorme capacidade para ser um dos melhores na alta montanha e no contrarrelógio, onde se decidem, precisamente, os grandes resultados nas grandes provas do ciclismo mundial.
Claro que esperamos todos para ver o que fará, um dia destes, o jovem João Almeida no Tour de France, que é uma espécie de Campeonato do Mundo do ciclismo, verdadeiramente o topo da pirâmide para qualquer candidato que se preze a um lugar entre os maiores, e também para João Almeida esse não deixará de ser, sempre e em qualquer circunstância, o maior dos desafios. 

SINTO, em todo o caso, que voltámos a ter na realidade quem nos leve as emoções e o entusiasmo pelas grandes montanhas acima, exatamente o que nos tem faltado, a nós, portugueses, para podermos renovar a esperança numa modalidade tão popular entre nós, e que tanto fez pelo desporto nacional, e tão duramente castigada tem sido pelos efeitos trágicos de histórias contadas e protagonizadas por verdadeiros cisnes… negros!
João Almeida é um daqueles heróis de que todos precisamos para nos apaixonarmos de novo pelo melhor do desporto de alta competição, e seguirmos em frente com vontade de ignorarmos o futebolístico clima de clubite aguda que, volta não volta, mergulha o país desportivo num indigno combate de frustrações. Recordo, aliás, em homenagem a João Almeida e a todos os João Almeida e Rui Jorge que enobrecem o desporto português, palavras desse grande poeta do nosso tempo que é Manuel Alegre, também ele um seguidor apaixonado das (boas) causas desportivas… 

Mais do que ser primeiro/
Herói é quem/
Sabe dar-se inteiro/
E dentro de si mesmo ir mais além...