Há, precisamente, quatro anos...
Há quatro anos, sei precisamente onde estava. Passeava, feliz, pelos longos corredores de Orly, paulatinamente à espera da abertura das portas do voo da TAP para Lisboa, descobria, com fascínio, uma réplica da bola do Euro-2016, que me apressei a comprar para o Afonso, depois entrei na loja de livros e jornais, comprei toda a imprensa francesa, tão previsível naquela amarga lamúria da final falhada, e, logo, para vergonha tricolor, perante os underdogs dos portugueses. Entretanto, voltava a recordar, com um largo sorriso de pura maldade, o transbordante contentamento dos festejos dos portugueses subitamente aliados aos pieds noirs, naquela ainda tão recente madrugada no Arco do Triunfo, com o José Manuel Delgado a dar voltas à Étoile, buzinando freneticamente, sob o olhar desolado e estupefacto da gendarmerie. Olhei em volta, e o mundo inteiro, que estranhamente por ali passava, àquela hora, olhava-me, manifestamente, com uma irresistível inveja da minha avassaladora felicidade.
Há, precisamente, quatro anos, naqueles longos corredores de Orly, eu era o solitário mais acompanhado do planeta e a vida abraçava-me com toda a força da sua magia. E se algum ser, vindo lá dos confins do universo, me abordasse e perguntasse por que razão eu era, assim tão evidentemente, o terráqueo mais feliz do mundo, eu estaria pronto a explicar que tudo se justificava por causa de uma bola e de um relvado, num jogo de onze contra onze, e, muito especialmente, por causa de um pontapé de um herói improvável, um negro alto e desengonçado, de quem todos, antes, duvidávamos do jeito para o futebol, o nome do tal jogo de que falava, e que, muito provavelmente, não se jogaria em qualquer outro lugar do imenso universo, a não ser que Deus achasse a terra pequena de mais para se divertir com o melhor jogo do mundo.
Faz, precisamente, quatro anos que entrei para o avião da TAP, o lugar, desta vez, nem me parecia assim tão pequeno, a refeição a bordo não sabia, como de costume, a um plástico mal reciclado, o vinho servido era de uma colheita irrepreensível e o azul já pálido do céu, com o sol-laranja a pôr-se para ocidente, parecia-me uma óbvia homenagem dos deuses aos homens que tinham vestido a camisola nacional e que, precisamente naquele dia, estavam a ser falados no mundo inteiro.
Faz, precisamente, quatro anos que aterrei no aeroporto de Lisboa, o aeroporto, de todo o mundo, que tem a mais bonita aproximação à terra, sobrevoei o estuário do Tejo, deslumbrei-me com as pérolas de luz da minha cidade e senti uma surpreendente serenidade na aterragem, antes sempre nervosa, do enorme pássaro de lata.
Faz, precisamente, quatro anos, que saí pela manga, ultrapassei a lentidão dos passageiros indecisos, atravessei o átrio, esperei, impaciente, pela mala de porão, e saí para o abraço de família, que sempre foi, ao longo destes cinquenta anos de saltimbanco universal, o meu porto de chegada e de abrigo.
Hoje, neste lago de vidas paradas, como uma imensa reticência que nos obrigam a viver, sem sabermos quando e como acaba, apenas penso que daqui a quatro anos, se tentar memorizar onde estava hoje - isto, se a vida mo permitir - não serei capaz de dizer mais de que foi um dia em que quatro anos antes tinha voado de Paris para Lisboa, feliz pela vitória de Portugal no Europeu de 2016, e por ter tido o imenso privilégio de ter estado, fisicamente, em Saint-Denis, integrando uma extensa e competente equipa de A BOLA, e ter assinado uma das mais apaixonantes peças jornalísticas da minha vida.