Gâmbito de Dama

OPINIÃO21.11.202003:00

SOBRE a série do momento, Gâmbito de Dama, da Netflix, junto crítica, que, fascinado que fiquei, desejo motivadora.  Assenta num livro dos anos 80, que não li, sobre uma prodigiosa xadrezista americana, órfã, nos anos 50 e 60. Enquadra-se num ou noutro lugar comum, afortunadamente, se o comum conforta. Desde logo se associa a história à vida de Bobby Fisher, numa política de guerra fria rebuscada entre EUA e URSS, romantizada.

Mas depois acrescenta-se o ambiente ficcionado - lembra Rocky a treinar-se para defrontar Drago em Moscovo - e junta-lhe uma atualidade feminista, poderosa, no estilo hipnotizante da jovem protagonista, no abuso da maquilhagem, nas roupas compradas em Paris, casacos pretos e brancos, padrões de xadrez, uma aragem de feminilidade livre, escolhida, uma mulher de temperamento e talento que a tornam respeitada pela cadência de adversários, miúdos e maduros, todos excêntricos e fáceis. Reis caídos.

A série aprofunda o xadrez, claro. Quem o domina de forma básica não poderá deixar de admirar-se com o mundo de possibilidades, aberturas e defesas, variantes e estilos que ali se debatem - até Kasparov foi consultor. Ali, nunca se discute se o xadrez é ou não desporto. É claro que é. Um desporto da mente. Um desporto efetivamente, como o certifica a Global Association of International Sports Federations.

Vendo Gâmbito de Dama assinalei outro interesse,  mais subtil: a ligação entre o trauma e o génio da protagonista. Mais: entre a dependência, de drogas e álcool, e a criatividade. Destruir a pessoa para criar o artista. É um tema clássico que nos leva ao início das coisas, e ao fim delas, na literatura e na poesia, nas figuras destrutivas de Sartre ou Dickens, Aldous Huxley ou Stephen King, Baudelaire ou Poe. As portas que julgamos abertas pelos estímulos artificiais, uma das nossas ilusões, afinal. Gâmbito de Dama é uma jogada de mestre. Move todas as peças.