Futebol em forma de ‘chouriço’ mediático

OPINIÃO20.11.201803:00

1. Não havendo jornada do campeonato de futebol, não há conferências de imprensa dos técnicos das principais equipas e escapamos aos respectivos resumos nos fartos e repetidos noticiários televisivos. Há umas semanas, vinha de Beja de automóvel e liguei o rádio para ouvir as notícias. Mal o fiz, apanhei com um desses momentos imperdíveis que consistem nas perguntas e respostas de técnicos e/ou jogadores antes da realização de um jogo. Talvez porque viajasse sozinho, mantive-me escutando um ou dois minutos da conversa, ao contrário do que costumo fazer com a notável invenção tecnológica do controlo remoto dos televisores que sempre me facilita um fulminante dedilhar no dito aparelho. Foi o tempo suficiente para ouvir duas ou três respostas, a última das quais me impeliu a remeter a rádio ao merecido silêncio. Fixei-a e aqui a reproduzo textualmente: «Para este jogo, só temos uma maneira de o enfrentar. É enfrentá-lo.» Fiquei atordoado com tanta sapiência e pus-me a pensar em formulações retóricas equivalentes. Assim me surgiu a ideia luminosa de que num jogo, seja ele qual for, só existe uma maneira de o ganhar. Sabem qual é? É … ganhá-lo. Ler A BOLA na versão IPAD tem, entre outras, a vantagem de se ter um arquivo fácil, limpo e rápido para encetar uma procura de um resultado, de uma notícia, de uma entrevista ou de uma conferência de véspera.

Partilho aqui com o leitor, algumas das pérolas ditas por diferentes treinadores nas últimas semanas. Não é minha intenção criticar o que se diz (ou não diz), é antes pôr em causa o interesse da própria liturgia de vésperas. Imagino até quão aborrecido e pouco atractivo é para um treinador repetir-se ad nauseam e quão difícil é dizer algo de novo ou interessante para além dos lugares-comuns e (para alguns) de umas piadinhas ou graçolas na busca de uma manchete. Porque não se trata de individualizar, mas de abordar este sempre maçudo, desinteressante e recorrente evento (como agora se diz para tudo), limito-me a transcrever algumas frases sem referir o seu autor e evitando nomes de clubes (dos próprios ou dos adversários). E parto do princípio que o que vem transcrito no jornal é, selectivamente, o considerado mais importante ou interessante (!) dos muitos minutos que as televisões informativas despendem nos seus directos. Ora vejamos alguns dos muitíssimos exemplos de truísmos e tautologias discursivas que encontrei:

«Os treinadores vivem dos resultados»; «Temos de conhecer o adversário, as suas individualidades, o seu colectivo para percebermos a exigência do jogo»; «Estou agarrado a uma série de conceitos e esses conceitos levo-os para todo o lado, independentemente do sistema táctico»; «Os jogadores sabem o que temos a fazer e qual a nossa filosofia»; «Se não tivermos a bola, temos de ir rapidamente à procura dela e quando a tivermos não a podemos perder parque esta é uma máxima que defendemos»; «Se tivermos de alterar peças, alteraremos»; «A equipa tanto pode jogar de uma maneira como de outra»; «Passo a passo vamos tendo pontos»; «Resultados são resultados, e de qualquer maneira queremos vencer»; «Para ganhar, nós não queremos sofrer golos e queremos pelo menos fazer um»; «Nunca podemos dizer quais os jogos decisivos, porque todos são vistos como finais»; «É um jogo muito importante para nós. Queremos vencê-lo»; «O que temos na nossa cabeça são os três pontos»; «Não podemos entrar no jogo a pensar que as coisas se vão resolver só porque se vão resolver»; «Temos de escolher os caminhos para desequilibrar a equipa contrária»; «No final é que se fazem as contas»; «Todos os que viajaram estão disponíveis para ir a jogo»; «Vamos ter onze jogadores a jogar e mais sete no banco»; «O jogo teve coisas positivas e menos positivas»; «Sabemos onde estamos»; «Não ficamos contentes por perder»; «Nós a querer muito ganhar e, do outro lado, também uma equipa que nos quer ganhar»; «Qualquer jogador tem de estar bem fisicamente»; «Se joga hoje ou se vai para o banco, saberão amanhã». Por aqui me fico, sob pena de não ter mais espaço para outros assuntos.

O futebol jogado conviveu muitos e bons anos sem estas situações e nada de mau lhe aconteceu. Percebo que haja jogos, partidas decisivas, momentos de esclarecimento prévio que até justifiquem um contacto interessante com os media. Mas sempre e a todas as horas, seja o mais insignificante encontro ou o mais decisivo jogo, é que é uma fartura que julgo cansar os protagonistas e nada acrescentar ao que já se sabia. É claro que num pequeno país como o nosso em que há vários jornais desportivos diários (que saudades tenho do tempo em que suspirava pelas segundas, quintas, e sábados para imergir em A BOLA!), canais televisivos de notícias que mais são canais de futebol, jornais diários com extenso noticiário da bola, etc. há a necessidade de preencher o aparente vácuo e estas conferências são um oportuno adubo para os chouriços diários, sobretudo nas televisões.

Tenho perguntado a quem trabalha nestes meios por que razão há esta prática conferencista de antes dos jogos. Respondem-me invariavelmente que é por causa das audiências e do respectivo share. «Audiências?», pergunto de seguida. «Sim», é-me respondido. Há muita gente que fica colada ao ecrã a absorver tal matéria. «Talvez seja», remato eu, o que é ainda mais preocupante. Ou talvez seja eu que esteja a ver mal…

2. Ainda à volta da televisão. O que nos foi oferecido, em doses cavalares, a propósito da detenção do ex-presidente do Sporting, é um caso de patologia comunicacional. Foram horas e horas intermináveis entre Alcochete, Barreiro, Montijo, a perorar em contínuo sobre suposições, reposições, maldições. Directos sobre directos, imagens de arquivo repetidas às centenas, notícias de manifestações pró e contra de multidões de dez ou uma dúzia de entusiastas crentes e descrentes. Houve até momentos absolutamente indecorosos e humana e profissionalmente indignos quando foram seguidos confusa e atropeladamente familiares (designadamente os pais) de um dos detidos para lhes perguntarem como se sentiam (!), não respeitando sequer o seu inalienável direito ao silêncio, ou o caso de uma jornalista que perguntou ao advogado do detido junto à porta da polícia… o que é que ele estava ali a fazer! Definitivamente a CMTV passou a comandar esta geringonça mediática. É, agora, o benchmarking dos outros canais (com a excepção da RTP, apesar de tudo mais comedida e selectiva). Em estúdio, comentadores residentes (quase literalmente, se é que não dormem lá) que estão horas e horas a encher o chouriço e - uns mais do que outros - transformados em verdadeiros tudólogos pronunciando-se sobre a bola corrida, a bola parada, a legislação penal, o império da lei, a psicologia social e clínica, a economia clubista, e muito mais. A estes juntam-se uns tantos convidados que andam a saltitar de estação em estação a uma velocidade mais elevada que a minha capacidade de zapping. O país fica suspenso de tão longos e profícuos debates, como se mais nada houvesse de importante. Em especial, dos que metem escárnio e mal-dizer ou destilam golfadas de sangue. O alinhamento dos noticiários afasta para o rodapé pequenas minudências e questões irrelevantes como o Orçamento, o problema do Brexit, o desconchavo da saúde, as questões laborais, etc., etc.

Uma lástima sobre lástimas. Casos judiciários, futebol e actividades criminosas, numa mistura quase monopolista como se o país e o mundo fossem apenas isto.  Uma demoníaca atrofia mediática onde todos estão simultaneamente a transmitir o mesmo, sem quase haver direito a uma oferta de diferença. Uma estupidificação alimentada e alienante. Basta!