Fábulas e Política

OPINIÃO12.04.202004:00

Mais histórias de O senhor Brecht para recordar nestes tempos de dias caseiros. Nesta suspensão e neste grande intervalo.
Humor negro, ainda; e histórias imaginárias. Duas fábulas e duas narrativas políticas. Sobre a inveja, rinocerontes e gatos.

A justiça

1 Dois irmãos gémeos, muito invejosos um do outro e que dividiam sempre tudo, entre os dois, ao milímetro, porque apreciavam acima do mais a justiça, viram um dia nascer na sua quinta comum um animal estranho.
Esse animal tinha a anatomia de um burro, na parte da frente, e a anatomia de um cavalo, na parte detrás. Como estavam convencidos de que as duas patas de trás (de cavalo) eram bem mais rápidas que as patas da frente (do burro) cada gémeo queria montar a parte de trás do animal, deixando a parte da frente para o irmão. Cada um deles estava convencido de que, em viagem, chegaria primeiro o que estivesse montado sobre as patas mais rápidas.
Como ninguém abdicava da melhor parte decidiram, para equilibrar, amputar uma das patas de cavalo. Um deles montaria assim sobre uma pata de cavalo e o outro sobre duas patas de burro. Assim fizeram. No entanto, depois de olharem de novo para o animal não chegaram a acordo.
Não sabiam bem o que era   mais vantajoso, mas definitivamente o animal ainda não estava equilibrado; e ninguém queria ser prejudicado. Para serem justos, teriam de continuar a cortar.

O labirinto

2 A cidade investiu tudo na construção de uma imponente catedral. Ouro, pedras trabalhadas, tectos pintados pelos grandes pintores do século.
Para a valorizar ainda mais decidiu-se dificultar o acesso. O que se atinge com facilidade deixa de ter valor, filosofava com esforço um determinado político.
Construiu-se então um labirinto que era o único meio de chegar à catedral. O labirinto foi tão bem feito que nunca ninguém conseguiu encontrar a passagem para a catedral.
O labirinto transformou-se na grande atracção da cidade.

A pergunta

3 No dia em que o presidente convencera a população de que era necessário defender a pátria a todo o custo, começando, para isso, por invadir o país vizinho, nesse mesmo dia, em plena assembleia, que juntava os homens mais iminentes, e depois de a decisão tomada, aquele que era considerado o homem mais imbecil da cidade, que nunca fora à escola, que era completamente analfabeto e que nunca dissera uma única frase sensata, levantou o braço pedindo permissão para fazer uma pergunta.
Houve então um grande burburinho em toda a assembleia e a ninguém passou despercebido o rosto apavorado do presidente.
Claro que ninguém permitiu ao imbecil que, num momento tão importante, fizesse uma pergunta.

O gatinho

4 Havia um gato que, todos os fins de tarde, se aproximava do dono e lhe lambia os sapatos com a sua língua minúscula.
Vencendo uma certa timidez e uma certa precaução higiénica, o homem um dia decidiu descalçar-se para observar se o gato lhe lambia os pés como fazia aos sapatos.
Foi aí que o tigre, que se disfarçara de gato durante anos, decidiu que era o seu momento, e em vez de lamber, comeu.