Está a chegar o ‘outro’ futebol
Está a chegar o futebol. Ficou numa paragem do meio do nada, esperou pela ordem de poder arrancar de novo e, agora, que o primeiro-ministro agitou a bandeira que dá a partida, aquece os motores para a corrida final.
No entanto, dizia ontem o treinador do Shakhtar Donetsk, Luís Castro, na Quinta da Bola, não devemos ser demasiado exigentes com a qualidade do jogo que por aí virá. Será um outro jogo. Sem o entusiasmo das bancadas, arbitrados por juízes sem pressão envolvente, com os treinadores a fazerem-se ouvir no estádio todo, se possível, bacteriologicamente puro, jogado por profissionais chegados de uma improvável pré-época, condicionados por um tempo demasiado de paragem, estimulados por objetivos quase imediatos e específicos, preocupados com os riscos de um sempre possível contágio, num ambiente desconhecido em circunstâncias nunca antes acontecidas.
Por isso, Luís Castro alerta para que será o futebol possível, mas não o futebol que os adeptos mais gostariam de rever. E por isso pede tolerância, por antecipação, considerando que, apesar de tudo, será melhor do que nada.
De facto, a alternativa era continuar a não deixar andar os ponteiros do relógio do tempo. É o que, todos, nos habituámos. Às vezes, damos connosco a pensar que, lá fora, o tempo parou, de tão farto que andava de ver as pessoas sem tempo para terem tempo.
É, diz-se, uma boa altura para refletir, para ler, para nos empazinarmos de cultura, como se a cultura fosse um remédio inventado para o lazer e o ócio. Logo nos damos conta de que, no atual estado de um confinado enfartamento, não temos concentração para ler, nem disposição para pensar outra coisa que não seja um eterna interrogação: quando é que vamos sair disto?
Até porque o que o primeiro-ministro nos veio dizer é que, impossibilitado, que está, de nos prometer o regresso da normalidade às nossas vidas, promete-nos abrir as portas do telefutebol. Faz sentido. Depois do teletrabalho, das teleconsultas, das telenovelas, das teleconferências, da telescola e das televisitas, chega-nos a telebola, para não nos martirizarmos tanto com pensamentos negativos.
A felicidade previsível está em que as televisões roubem algum espaço à morbidez das notícias viciantes da Covid-19, em Portugal e no mundo, com todo o carrossel de dramas e de tristezas, e nos divirtam com aquelas discussões pacóvias sobre o osso do jogo, ou a vã glória de interessar o telespectador na arte do no sense.
Mas será, certamente, uma novidade, o que por aí vem. Discutir que um apanha bolas está pago, pelo inimigo, para levar mais tempo a desinfetar a bola, antes que seja lançada por um prometido transmissor do vírus. Adivinhar quem é a equipa do VAR por detrás das suas máscaras cirúrgicas. Ter a pachorra de contar o número de garrafinhas individuais que deverão matar a sede dos intérpretes.Testemunhar os silêncios das bancadas frias e nuas. Ouvir, enfim, a comunicação entre o árbitro e os jogadores (e vice-versa) mesmo quando colocam a mão à frente da boca.
Tempos de exceção, futebol de exceção. Pode-se e deve-se consumir e, a partir de certo momento, concerteza que até nos vamos habituar, mas é outro futebol. Um futebol que imita o futebol é sempre pior e, disso, devemos ter a devida e serena consciência.
Servirá o interesse público de entreter, de não deixar as depressões escalarem o que lhes dá na real gana. E não é pouco. É bem mais do que outros entretenimentos (não) conseguiram. Mais uma dívida que o povo irá contrair, mas, esta, bem mais fácil de ser paga.