Erros e oportunidades
UMA crise como esta tem colocado à prova todos os decisores, sejam eles políticos ou empresários, presidentes ou líderes das mais variadas organizações, públicas e privadas. Talvez nunca como agora na história contemporânea terá sido tão difícil decidir face ao quadro de incerteza que ainda nos deixa a todos sem saber como serão os amanhãs que cantarão, mesmo em puro desafino.
No desporto, tivemos de tudo ao longo destas longas e penosas semanas: boas e más decisões, consoante o grau de informação, astúcia ou displicência. Vimos, por exemplo, a UEFA permitir que se realizassem o Atalanta-Valência (à porta aberta, em San Siro, Milão, quando já havia informações de um grande surto no norte do país) ou o Valência-Atalanta e PSG-Dortmund, ambos à porta fechada mas com milhares de adeptos à porta dos estádios em ações de apoio, contrariando assim o objetivo primordial de evitar aglomerações. Hoje está provado que toda aquela irracionalidade ajudou a pintar a tela de negro: Itália, Espanha e França são os três países europeus com mais casos de Covid-19. Mais: todos vimos o Liverpool-Atlético Madrid com Anfield cheio. Um erro histórico também do governo de Boris Johnson - e não há coincidências: a seguir a Itália, Espanha e França, o Reino Unido é o que tem mais mortos no espaço europeu. É caso para dizer que o futebol fez mal. Muito mal.
EM Portugal todos assistimos igualmente à indefinição e à tibieza dos nossos dirigentes numa primeira instância, pois é preciso lembrar que a jornada 26 foi suspensa não por iniciativa dos organizadores (Liga e clubes) mas por pressão dos próprios jogadores, personalizados nos capitães, que se uniram em defesa da sua própria saúde e das respetivas famílias. Uma decisão sábia e que também teve contributo importante para a forma como o País conteve a propagação do Covid-19.
Mas se Pedro Proença foi ultrapassado na curva numa fase inicial, recompôs-se e não perdeu o rumo. Quando admitiu o regresso do campeonato em meados de maio não só estava em linha com o que a maioria da Europa do futebol planeava mas também com o próprio Governo de António Costa, quando apontou, à data, o dia 4 de maio para um eventual regresso das aulas presenciais (cujo plano foi entretanto alterado anteontem).
Proença foi, também, dos primeiros a defender, de forma muito vincada, a necessidade de os campeonatos terminarem no campo e não em decisões de secretaria, algo que dias depois a UEFA confirmou na carta ameaçadora dirigida à Bélgica, quando a respetiva Liga anunciou a intenção de dar por terminado o campeonato da maneira como está e atribuir o título ao Club Brugge. E o que sabemos agora é isto: a assembleia geral marcada para o efeito foi suspensa, a Holanda também recuou nessa ideia e a Escócia, que também pretendia despachar já a questão, dando o título ao Celtic, adiou tudo para junho - e perante isto é ainda mais anedótico o pedido de esclarecimentos feito pelo Benfica à UEFA para saber se o título de campeão em Portugal poderia ser dado a quem venceu a primeira volta...
AProença podem ser apontados muitos erros na forma como tem gerido os destinos da Liga, principalmente pela ausência de posições fortes em momentos cruciais ou à sua incapacidade de se bater perante o Estado para reclamar preceitos legislativos que possam alterar de vez a natureza de eucalipto que faz do campeonato português desequilibrado e por conseguinte desinteressante em muitas fases da época com prejuízos para todos. Mas não lhe pode ser apontada irresponsabilidade ou irrealismo em admitir (e não forçar, claro) o regresso do futebol quando a tal luz ao fundo do túnel for muito mais clara. Nesse caso o rótulo teria de ser colado ao primeiro-ministro por admitir aulas presenciais dos alunos do 11.º ou 12.º ano ou dos presidentes de todas as grandes ligas europeias, que têm vários planos e moldes para a conclusão dos respetivos campeonatos, cuja organização e massa crítica são superiores ao português. Maior irresponsabilidade seria não ter um plano, mesmo que condicionado pela evolução da pandemia. Admiti-lo publicamente quando em muitos países as morgues se enchiam terá sido o maior pecado, mas seria impossível escondê-lo e mais vale discursos às claras que informações dispersas e especulativas.
Ofutebol, tal como todas as atividades económicas, tem de voltar à jorna. É impensável, irrealista e demagógico acreditar que qualquer ramo profissional pode ficar seis a sete meses parado (o futebol de hoje, altamente industrializado em doses excessivas. Os cortes salariais a que temos assistido são a prova de que nem mesmo num ninho de milhões não há fundos de reserva. Os custos são proporcionais às receitas e o circo está montado de forma a que o dinheiro esteja sempre a circular - mais para ganho de uns do que outros...
Irá esta crise provocar um ajustamento dos valores pagos em salários e transferências? Claro. E esse é um desafio aos clubes portugueses, que têm na venda de jogadores a sua principal fonte de riqueza (e não os direitos de TV, como acontece em Espanha, França e Inglaterra). Veja-se os casos de Benfica e FC Porto: têm custos com salários de jogadores e treinadores superiores a 30 milhões de euros (€32 M os dragões, €36 M as águias, segundo os últimos relatórios e contas; e um total de €43,5 M e €46 M, respetivamente, englobando salários de dirigentes e outras despesas com pessoal; já o Sporting tem custos totais de €35 milhões, representando os salários de jogadores e treinadores uma fatia de €24 milhões).
Sem a possibilidade de fazerem grandes vendas e ainda terem de abater dívida, adivinham-se tempos difíceis para todos (mais para FC Porto e Sporting mas as águias também não podem pensar que voltarão a fazer transferências como a de João Félix). E porque será um problema comum, esta poderá ser a derradeira oportunidade para o futebol português se endireitar de vez. Centralização de direitos, eventual alteração dos quadros competitivos (na Liga e Liga 2) e regulamentos que façam mais sentido do ponto de vista ético. Há potencial para isso, basta que que o interesse coletivo se sobreponha ao individual. Haja saúde para tal.