Dragão com árbitro (quase) privativo
Abel Ferreira tocou no ponto essencial da história do jogo, mas as suas palavras evaporaram-se na balbúrdia das coisas ditas a quente depois dos jogos, principalmente naqueles em que a expressão do resultado suscita desencontro de opiniões entre os intervenientes.
O treinador bracarense, curvando-se perante a enorme capacidade argumentativa de «um dos melhores FC Porto da história», tentou trazer à colação a situação que permitiu ao oponente empatar a dois golos através de um penálti que classificou de duvidoso, um penálti que o árbitro descobriu com inusitada certeza, por entre confusão de pés alvoroçados.
Ouvi-o lamentar-se e lembrei-me do que me contou um dirigente de grande prestígio já falecido, nos primeiros anos do meu percurso jornalístico, ainda no tempo em que as pessoas falavam em liberdade, sem o biombo censor das estratégias de comunicação que entretanto se inventaram. Contou-me ele que os árbitros que são bons não se comprometem em lances nos espaços sensíveis do terreno de jogo e que só admitem uma leitura. Isso fica para os outros, como única forma de se tornarem notados e, eventualmente, arranjarem apadrinhamento que os ajude a subir na carreira: se falta o mérito, valha o favor.
O árbitro que é bom, segundo esse dirigente, por ser mais talentoso e revelar superior aptidão, faz a diferença nos detalhes, nas faltas a que não se atribui relevância por serem assinaladas em zonas neutras, distantes das balizas, mas que massacram a equipa penalizada, ou nas faltas descortinadas em zonas de risco desde que seguro da sua absolvição perante a crítica por saber que a negligência ou a imprudência sentenciarão a culpa de um qualquer praticante menos prevenido. Dois substantivos maravilhosos e fiéis amigos dos árbitros, que os autorizam a tomar decisões feridas no rigor, embora protegidas de todos os reparos pela ambiguidade interpretativa que as leis de jogo concedem e que os especialistas na matéria utilizam com apreciável mestria.
Abel Ferreira terá pretendido destacar, com desajeitada ironia, é certo, o infinito talento e a visão microscópica de Jorge Sousa, ao conseguir ver o que viu e nas circunstâncias em que viu. Fê-lo em jeito de desabafo, com a ingrata sensação de se sentir ludibriado, mas não dever dizer mais do que disse. É o poder do erro de que o árbitro dispõe para controlar e intimidar, se quiser.
JORGE SOUSA esteve afastado da atividade regular devido a lesão que o obrigou a prolongada ausência. Regressou à 21ª jornada, no Moreirense-FC Porto que terminou empatado a um golo. Difícil e muito agitado. Basta recordar que os dragões marcaram por Herrera ao minuto 90+2. Após o apito final, ainda no relvado, foi exaltada a pressão exercida sobre o árbitro, o qual, no entanto, nunca perdeu a compostura. Era o segundo empate consecutivo portista na Liga (depois do 0-0 em Guimarães), mas no minuto 90+10 ficou registada a mostragem de um cartão amarelo ao jogador do Moreirense, Patito Rodriguez.
Não se pode afirmar, portanto, que Jorge Sousa pecou por défice de condescendência. De aí o reconhecimento do próprio presidente portista, que, na companhia do seu diretor do futebol, Luís Gonçalves, não abandonou o estádio sem antes se dirigir à cabina dos árbitros para cumprimentar o chefe de equipa.
Três jornadas depois, apesar desta carinhosa manifestação de amizade, Fontelas Gomes, o presidente dos árbitros e tanto quanto julgo saber responsável pelas nomeações, escalou Jorge Sousa para o FC Porto-Benfica (24.ª), com os desenvolvimentos que se conhecem, e três jornadas adiante, para o SC Braga-FC Porto (27.ª). O que nada tem de mal, aparentemente. O que causa estranheza é o critério. No seu curto ciclo nesta Liga, em seis jogos foi nomeado para três do FC Porto, metade do total. Ou seja, jogo sim, jogo não, espécie de árbitro privativo, ou quase.
Por um lado, vale o argumento de que os melhores árbitros devem ser escolhidos para os jogos mais importantes; por outro, deve presidir às nomeações a conveniente prudência para não se ampliar a dúvida. Ora, neste caso, como se entende, nem tudo foi tido em devida conta, sobretudo nesta derradeira fase da prova em que cada ponto parece ter mais valor e cada decisão mal tomada dá força a gritaria para o resto da semana.
Nota final - Se Abel Ferreira foi expulso por aquilo que confessou ter dirigido ao árbitro, então o árbitro exorbitou as suas competências. Deverá ter sido mais por causa da expressão corporal. O costume. Chamem-me nomes, mas não façam gestos, dizia antigo árbitro, também já falecido. Abel vai na quarta expulsão e começa a tornar-se um alvo fácil. Deve proteger-se, para a equipa saber que o encontra quando mais precisar dele.