Diego Armando Maradona
NÃO tenho por hábito transformar pessoas em divindades, mesmo que figuradas. E muito menos em Deus com letra maiúscula. Levo muito a sério o monoteísmo religioso de um só e único Deus. Sei da facilidade com que se remata qualquer epíteto de deificação ou divinização enquanto forma hiperbólica de elevar alguém, mas não deixa de ser uma comparação que empobrece a ideia da transcendência divina.
Fiz esta pequena introdução para falar de Diego Armando Maradona, que precocemente deixou o mundo terreno. Não para lhe chamar Deus ou, mais contidamente, um deus. Mas para aqui falar de um homem e de um atleta que pude ver jogar como até hoje não vi ninguém igual. Todavia, não entro na obsessão de assegurar quem é ou não o melhor jogador de futebol de sempre, até porque não tenho nem um aparelho, nem uma métrica infalível para aferir tal concurso que entretém análises totalmente subjectivas, parciais ou até enviesadas, tantas vezes por razões extra-futebol.
Aliás, este tipo de rankings parte de um princípio que é o de comparar contextos por vezes tão diferenciados. Por exemplo, comparar os tempos de Di Stéfano, Pelé, Eusébio, Maradona, Messi e Ronaldo - só para citar alguns dos melhores - é não considerar os por(maiores) que podem fazer toda a distinção. Sobretudo os aspectos relacionados com a vantagem do presente sobre o passado. Alguém acha que jogar com um couro dos anos 50 e 60 do século passado ou com as preciosas bolas de agora é a mesma coisa? E as chuteiras? E as condições de treino? E os relvados? E as substituições que não existiam? E os cartões amarelos e vermelhos que antes não havia para dissuadir o massacre sobre os melhores? Aliás, só esta circunstância leva a que, hoje, jogadores excepcionais sejam (e bem) mais protegidos do que antigamente, quando a ordem era ou passa a bola ou o jogador, nunca os dois. E o acompanhamento médico e o tratamento de lesões? E o contexto salarial? E o futebol-televisão que hoje nos entra todos os dias em casa? E tantas outras coisas que nos permitem concluir que a única coisa que coincide são as regras básicas (e mesmo assim nem todas) deste grande, popular e universal desporto.
Já várias vezes, e agora ainda mais depois da morte de Maradona, me interroguei sobre o seu incomparável fascínio. Mais intenso, mais vulcânico, mais ardente do que outros jogadores que, com ele, também estão no pódio dos melhores de sempre. Por exemplo, Pelé que também pude ver jogar, sobretudo nos Mundiais que disputou, foi um jogador notável, mas mais frio e cerebral na sua vida fora do campo. Outro atleta, talvez o que mais gostei de ver na simbiose entre qualidade e estética de jogar, o holandês Johan Cruyff, também desaparecido tão cedo, interpretava uma certa nobreza, algo distante do povo. Eusébio, outro incomparável atleta, que por ser português e por ter jogado só em Portugal, quando ainda não havia a transumância pela Europa e mundo fora, não pôde beneficiar da intensidade universal dos ídolos de cada momento. Por fim, os dois talentos deste século, Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, cada um a seu modo, bem à frente de tantos outros jogadores marcantes, mas que ainda estão no activo e, como tal, ainda carecendo de uma apreciação que vá além da reforma futebolística, marcada por um contexto comunicacional onde, por vezes, misturam ou deixam misturar o estádio dos jogos e o seu estado fora do estádio.
Tudo isto para concluir por que sempre considerei Maradona um caso à parte. Verdadeiramente, de entre os seus mais famosos pares, considero-o o que melhor conciliou a ideia da excelência futebolística com a expressão da sua raiz popular. Bem sei que a morte mitifica o que queremos que seja mitificado, mas, em vida, este argentino já foi uma genuína fusão de Maradona e Povo. De um modo tão autêntico quanto sobressaltado. Numa expressão tão solidária quanto emulada. Maradona partiu da aldeia dos últimos para o mundo dos primeiros. O seu povo de origem e o seu povo conquistado identificaram-se emocionalmente com o dom de Maradona e Maradona sentia o conforto de ser um ídolo no meio do seu povo. Na sua recepção de delírio no San Paolo cheio em Nápoles, Maradona disse-lhes «Buonasera, napoletani. Sono molto felice di essere con voi», chutando a mágica bola para os tifosi. Descreveria mais tarde: «Eles deliravam e eu não entendia nada...»
Nesta relação havia talento e génio. Ora, esta fusão com o seu povo era também a confluência entre o seu talento (o que ele possuía em abundância) e o seu génio (o que, por vezes, o possuía desgraçadamente). Uma aliança construída por via da sublimidade, como por caminhos da perdição. Por via da exaltação de quão a vida é bela e da rendição de quão a vida pode ser a sua negação. A Maradona tudo foi permitido porque diante da sua autenticidade, da sua quase bondade de criança, da sua humildade comovente, da sua ascensão e queda, da sua umbilical e nunca renegada ligação às suas raízes de vida e de húmus, se edificou, naturalmente, a tal fusão indestrutível.
Maradona é um caso único de uma vida que nenhum manual de ética, de Aristóteles a Kant, de Cícero a Habermas, é capaz de explicar. Uma vida em que as noções de bem e de mal se cruzavam não como antagónicas, não como indiferentes, mas como paradoxalmente sedutoras e aliadas. Por isso, Deus, soberano do Bem, e Diabo, soberano do Mal, se cruzaram intensamente em Maradona. A chamada mão de Deus foi, afinal, a mão do Diabo, mas até isso, a que hoje chamamos batota, foi alcandorado a uma suprema lenda na história do futebol. Para qualquer outro atleta, seria um momento negativo que sempre acompanharia a sua memória. Para Maradona é, como temos visto, um marco da sua excelência.
Para Maradona não havia inimigos, tão-só adversários. Exteriorizava a alegria do golo de um modo espontâneo, não estudado, do que brotava dentro dele. Chorava como a criança dócil que existia no seu coração, como vimos na final do Mundial de 1990 contra a Alemanha. Quase liliputiano com o seu metro e 65 centímetros, quase burlesco na sua entrega, com uma massa muscular ad hoc e um centro de gravidade por ele inventado, com a criatividade espontânea da sua natureza, assim foi Maradona sem artes postiças. Quem, pela idade, não pôde vê-lo jogar, certamente se perguntará como foi possível ele ter chegado ao topo, agora que se glorifica tudo o que Maradona afinal nunca foi ou nunca teve, como altura, estética, aprumo, disciplina!
Hoje vive-se obcecado com quem é o melhor, o mais poderoso, o mais mediático, o mais galardoado, o mais isto, aquilo e aqueloutro. Hoje dominam as estatísticas que, não raro, são uma forma de separar o desempenho colectivo da compulsão individual de recordes reais ou inventados. Se olharmos para a carreira do futebolista e se exceptuarmos a conquista do Mundial de 1986 e de dois scudetto inéditos no Nápoles do Mezzogiorno italiano, concluímos que foi um percurso relativamente modesto para o seu potencial. Também nunca obteve um daqueles troféus do melhor jogador mundial que hoje proliferam, desde os mais prestigiados aos mais interesseiros, que hoje são vividos como se fossem a coisa mais importante do mundo. E, pergunto-me, como é que mesmo assim Maradona está acima de todos?
Hoje é o tempo da disjunção ou enquanto se afasta a ideia associativa da conjunção e. É isto ou aquilo e não isto e aquilo. É fulano ou sicrano e não esta e aquela pessoa. Maradona personifica muitos e e sempre abominou a correcção política de muitos ou. Nele conviviam, na máxima magnitude, todas as contradições do homem comum e do homem autêntico. Com uma magnitude que percorreu o mundo e foi a expressão quase trágica de uma vida e de uma profissão continuadamente expostas. De independência e de dependência. De virtuoso e de pecaminoso. De excessivo e de carente. De moderado e de descomedido. De belo e de perverso. De racional e de sensível. De ser-se adulto e de mostrar-se criança. De legítimo e de ilícito. De euforia e de depressão. De fé e de contrafacção de fé. De certezas e de dúvidas. De alegria e de lágrimas. De esperança e de desespero. De paixão e de negação. De ímpeto e de abandono.
A ele tudo foi perdoado, não porque se lhe absolvesse o perdão, mas porque se avocava a beleza da sua ingenuidade e a transparência de uma vida em jeito de montanha russa que nunca quis esconder. O modo como ele falava da sua rendição à droga era a expressão da sinceridade e do arrependimento dolorosamente cativantes. Foi sempre generoso, a não ser para ele próprio, auto-infligindo-se na estrada demoníaca do vício. Um homem do esplendor de tudo o que fez bem e do fulgor auto-destrutivo de tudo o que fez mal.
Morreu Maradona. Ele que veio do fim do mundo, para utilizar a imagem de um seu compatriota, o Papa Francisco. Com ele parte uma parte importante do futebol puro, sem adjacências, sem tacticismos. Do futebol-diamante, vindo de jazidas de carbono puro.