Das sensações da bola
Aqui há uns anos, dirigi um jogo importante do nosso campeonato, com um mediatismo anormal. As emoções dos adeptos estavam ao rubro e a expectativa sobre quem venceria era grande. Muito grande.
Nenhum árbitro fica imune a um jogo assim, tão especial. É certo que todos são importantes e merecem a mesma preparação e entrega, mas há uns que são diferentes nas sensações, nas emoções que nos fazem sentir.
O ambiente em redor dessas partidas ferve de outro modo, contagiando toda a gente. Há mais adrenalina, mais vontade, mais salero. Há mais ansiedade, efervescência e intolerância.
É algo que não se explica. Sente-se.
Recordo-me desse jogo, porque correu-me mal. Francamente mal.
Falhei julgamentos em lances de penálti, errei disciplinarmente e, pior do que isso, senti que nunca fui verdadeiramente dono e senhor do jogo. Nunca o tive na mão, nunca fui o árbitro que aquela partida merecia e exigia.
Penso que jogadores e treinadores, que tantas vezes passam pelo mesmo, sabem o quanto custa lidar com dias desses, em que tudo corre mal.
Uma coisa é errar e poucas pessoas saberem disso. Outra é errar com o mundo inteiro a ver, julgar e criticar.
Viver com o julgamento popular - seja através do seu silêncio ensurdecedor, seja através dos seus palavrões e insultos - é uma experiência demasiado marcante.
Nada nos prepara para isso. Só se sente quando se está lá, no meio do fogo cruzado.
Nas semanas que se seguiram, senti-me o ser mais pequenino à face da terra.
Não compreendia como tinha falhado tanto nem compreendia como é que, ainda assim, algumas pessoas podiam ser tão más, tão mesquinhas.
Recebi ameaças de morte, riscaram-me o carro, partiram os limpa pára-brisas e espelhos, incendiaram contentores junto à porta de casa e insultaram-me durante dias e dias a fio. Mas o pior nem foi a sentença implacável desses anónimos frustrados.
O pior foi o olhar desiludido de vários amigos de uma vida, que pareciam desconfiar da inocência dos meus erros.
Foi como se, por momentos, até eles acreditassem que alguns dos lapsos tivessem sido deliberados.
Essa sensação horrível vive connosco durante muito tempo. Mas, à distância, foi fundamental para o meu crescimento como árbitro e como homem. Como pessoa.
Hoje estou em paz comigo e com todas as pessoas que me rodeiam. As que me apoiaram sempre e as que desconfiaram pontualmente.
Hoje sei que o futebol é um alucinogénico potente. Adultera a razão do melhor dos homens, tornando-o temporariamente no pior dos animais.
Não há outra atividade no mundo assim, mas se fosse diferente...