Da ilusão e da desilusão

OPINIÃO23.12.201803:00

Vivemos numa sociedade cada vez mais iludida. Todos julgamos saber bem mais do que aquilo que, de facto, sabemos. Todos temos opinião sobre táticas, embora poucos possam aspirar a mais do que ser treinadores (e às vezes maus) de bancada. Todos somos peritos em leis de jogo, mesmo que nunca para elas tenham olhado o tempo necessário para apitar, sequer, um jogo de infantis. Todos juramos que seríamos capazes de governar o país, mesmo que muitos não consigam governar-se com o orçamento lá de casa. Todos começámos, de repente e sem sabermos bem como, a perceber tudo sobre Lei, mesmo que nunca tenhamos lido uma linha de um livro sobre Direito.


Não é que haja nisso, atenção, um mal que coloque em perigo o futuro da humanidade. Todos, mesmo os que nada sabem, têm direito a ter opinião sobre tudo. E a expressá-la. A questão não é essa. A questão está nos que, sem opinião sobre quase nada, muitos deles por não terem tempo, ou vontade, de pensar pela própria cabeça, veem na dos outros - a maioria sem formação para falar do que fala mas com muitos likes numa qualquer rede social ou com demasiado tempo de antena em meios pouco preocupados com o rigor (uns de forma premeditada outros, apenas, de forma irresponsável)do que diz quem lá vai - uma verdade inabalável. E que, quando essa certeza que têm como absoluta é desmontada por quem, de facto, estudou para perceber (e decidir) sobre o assunto, pensa sempre que o erro só pode estar do lado de lá.


É assim que uma sociedade cada vez mais iludida vai caminhando, também, para se tornar numa sociedade cada vez mais desiludida. E é aí, pensando bem, que reside o real problema. E, também, o verdadeiro perigo. Há demasiados exemplos disso.

Talvez tenha residido nesta crescente desilusão social parte da derrota sofrida anteontem pelo Ministério Público. Na ânsia de matar a ideia (provavelmente correta, até…) de que o futebol foi, sempre, intocável, quis fazer-se, porventura, do Benfica um exemplo (e que melhor exemplo poderia haver?) de que ninguém está acima da lei. A intenção é inatacável. A execução, pelo menos neste caso, é que parece ter ficado bem longe disso.

O que se tira realmente da leitura do despacho de instrução do processo e-toupeira não é tanto o facto de a SAD do clube da Luz ter sido ilibada dos 30 crimes de que estava acusada, mas muito mais o de o Ministério Público ter acusado uma instituição sem provas suficientes para fazê-la, sequer, chegar a julgamento. Repare-se: em menos de uma hora, aquilo que foi anunciado como «tão cristalino que dificilmente se poderia encontrar provas de corrupção tão consistentes» transformou-se num frágil castelo de areia, incapaz de resistir à mínima brisa.
Acredito que o Ministério Público acredita realmente (e não está sozinho nessa convicção, até porque ninguém diz que não aconteceu, apenas que os indícios apresentados eram demasiado frágeis para sustentá-la…) que a SAD do Benfica sabia dos atos agora imputados a Paulo Gonçalves. Mas a questão, como sempre escrevi - e esta premissa aplica-se a este ou a qualquer outro caso, envolva clubes ou cidadão individuais -, é que questões legais não podem, nunca, ser tratadas como matérias religiosas: não basta acreditar, é preciso provar. Colocar-se em posição tão frágil como a que se colocou neste processo não ajuda nada à credibilidade de quem tem tanta responsabilidade na sociedade portuguesa.

O caso e-toupeira tratou-se, portanto, muito mais de uma derrota do Ministério Público do que de uma vitória do Benfica - embora se perceba que assim seja festejada pelos benfiquistas tendo em conta aquilo por que passaram ao longo dos últimos dois anos. E, pelo que representa para um país que pretende instituições cada vez mais credíveis, não merece qualquer tipo de celebração. Pelo contrário.