Cristiano Ronaldo e o mundo real
Há uma enorme onda de solidariedade que é transversal e cobre todo o mundo. Um vírus implacável brincou com a ideia do Homem em dividir a Terra em continentes, em estados, em regiões. Não conhece fronteiras, nem carimbos no passaporte, o que lhe permitiu rir-se das bochechas de botox de Donald Trump, do imperial olhar de Putin, ou da boçal ignorância de Bolsonaro. O vírus é devorador e insaciável. Começou por ser devastador na China, tornou-se arrasador na Europa, ganhou, agora, a forma de um tsunami capaz de engolir os Estados Unidos e toda a América.
De todo o lado chegam relatos angustiantes e feitos heroicos de agentes da saúde que diariamente arriscam a vida por todos nós.
É natural que uma situação de calamidade mundial, como esta, suscite o mais amplo movimento de solidariedade. Desde pequenos atos de uma ingenuidade cativante, como a de pequenos grupos aparecerem à varanda de uma praça, de uma rua, de um bairro, para aplaudirem os novos heróis da saúde pública, aos generosos donativos de diversas figuras públicas, entre as quais, desportivas, que se fazem anunciar com gestos significativos de apoio, traduzidos em ofertas em dinheiro ou em equipamento hospitalar.
É evidente que alguns, mais críticos e menos sensíveis à ideia de haver alguma grandeza na generosidade de quem oferece um pouquinho da sua fortuna, não veem mais do que um momento ideal para o oportunismo social que permite limpar, com notas de euros ou de dólares, a consciência cívica.
Não concordo. Há, aliás, uma avantajada corja de multimilionários, mesmo na área do desporto, que não partilha nada com ninguém e que, nestes momentos trágicos, desaparece de circulação e fecha-se na sua torre de marfim, à espera de melhores dias.
Prefiro os que aparecem, dão a cara e, com mais ou menos sentimento real, com mais ou menos vantagem na notabilidade da imagem, oferecem um pouco da sua riqueza a uma causa humanitária.
Aconteceu, por exemplo, com Cristiano Ronaldo e com Jorge Mendes. Futebolista e empresário, ambos conhecidos pela exuberância dos seus pertences, tiveram os seus nomes inscritos entre as boas almas que se preocuparam com o drama de outros, nestes casos, em especial, com o drama de muitos milhares de portugueses.
No entanto, há que reconhecer que no caso de Cristiano, de quem pessoalmente tenho boa opinião sobre o caráter e tenho admiração sincera sobre o profissional, acho que deveria ter mais cuidado com o que faz passar, ele próprio e aqueles que lhe estão próximos, de uma imagem de ostentação de um luxo que, sobretudo nestes tempos, pode tornar-se chocante.
Em tempos de exceção, como estes, todos os exemplos são mais visíveis. Os bons e os maus exemplos. De Itália, que tem sido devastada, em particular, na zona norte, onde Cristiano e a Juve tem mais seguidores e mais fãs, já surgiram críticas assanhadas por verem demasiadas fotos de Cristiano a gozar, junto à piscina, as delícias do sol do Funchal. Se me perguntam se Cristiano deveria passar o dia em jejum e em penitência, digo que não, mas parece-me de bom senso que não exiba, ou não deixe exibir, nem mesmo para vantagem de seguidores de posts da sua irmandade, imagens que são manifestamente desadequadas ao sentimento geral de consternação e de respeito por quem vive no inferno do coronavírus.
Cristiano Ronaldo ganhou o que ganhou com o suor do seu corpo e com a genialidade da sua arte. Não precisa de pedir desculpa por ter o que tem. Precisa, apenas, de saber estar no mundo real.