Conto magiar e castelo encantado
1 - Rui Pinto está em prisão domiciliária em Budapeste, no seguimento de um mandado de detenção europeu e da cooperação entre a PJ e a sua congénere húngara.
Os advogados do jovem de 30 anos emitiram, entretanto, um comunicado onde se diz que ele é um amante de futebol «indignado com práticas vigentes neste desporto» e que, nesse contexto, «decidiu contribuir para o conhecimento público da extensão dessas práticas criminosas».
E mais à frente: «Não pode deixar de se notar, em particular, o incrível paradoxo que resulta da tentativa de criminalização do seu cliente, quando, na verdade, o seu gesto cívico e as suas revelações permitiram a numerosas autoridades judiciais europeias um avanço histórico no conhecimento das práticas criminosas no mundo do futebol” (sublinhados meus).
Por agora, ao que se diz, o que estará em causa é a pirataria sobre entidades do mundo do futebol que foi vertida para o football leaks e que terá precedido a devassa do servidor do SL Benfica.
Tenho a minha opinião sobre o que está subjacente a este caso, ainda que haja muito por saber numa certamente espessa e intrincada rede entre alegados criminosos, extorsores e chantagistas, adquirentes e usufrutuários de informação roubada e violadores e divulgadores de correspondência privada.
2 - Mas, aqui e agora, vou apenas escrever não sobre questões jurídicas, mas sobre o plano ético, deontológico e institucional subjacente também a casos semelhantes e, sobretudo, ao chamado ‘caso dos emails’ do SLB.
Bem sei que, no caso do SLB, a bateria do saque tem de tudo. Contratos e estratégias comerciais, como se isso fosse uma normalidade num contexto concorrencial legal. Condições laborais e pessoais, como se o direito de privacidade fosse coisa menor. Toneladas de ‘lixo’, truncagens e descontextualizações ilegítimas de ‘fontes’ milagrosas, como se a realidade pudesse ser torturada. E correspondência divulgada por terceiros - admito que alguma de mau gosto, inadvertida e desrespeitosa, mas não certamente muito diferente de práticas de outros ainda que por outras vias - como se estes fossem os ‘justiceiros naturais’.
Seja como for, nada justifica a negação de um dos mais sagrados princípios de conduta ética: a de que os fins não podem justificar todos os meios. Ou seja, a adopção do império da selva.
Absolutamente inacreditável é a confirmação pelos causídicos de práticas fora da lei - «denunciou praticas criminosas» - a que chamam gloriosamente «gesto cívico»!
Proclama-se a bondade dos fins a alcançar e define-se a sua infalibilidade através de uma iluminada expressão, qual seja - e volto a citar - a de «um avanço histórico». Assim o alegado sujeito da acção «decidiu contribuir para o conhecimento público de práticas criminosas», de tão indignado e sofredor que estava. Um gesto heróico, dirão. Um cavaleiro andante, quiçá romântico, pensarão. Um paladino da moralidade, certificarão. Um Robin dos Bosques cibernético que rouba aos por si aprioristicamente considerados criminosos para dar - sim dar, em regime da mais pura filantropia - a terceiros e, não menos importante, aliviar altruisticamente a carga de trabalho das autoridades policiais e judiciárias de um ou mais Estados de Direito! E, sendo assim, o denunciador (whistleblower) deve prevalecer sobre o criminoso, dizem-nos, embora sabendo que essa ponderação só tem lugar em casos extremos de protecção da sociedade previstos na lei.
Será certamente um verdadeiro enigma tentar, mesmo que em abstracto, encontrar o ponto de convergência entre tanta benemerência e o nível de vida e honorários a pagar por tais práticas de bem-fazer (ainda que por via de fundações igualmente filantrópicas). Tendo a nossa PJ informado que se trata de alegados crimes de «extorsão qualificada na forma tentada, acesso ilegítimo, ofensa a pessoa colectiva e violação de segredo», certamente a extorsão ou sua tentativa estarão a mais!
A generalização da violação do princípio ético atrás referido ‘decretando-se’ um qualquer fim como um bem e os meios como neutros levaria a aceitar práticas hediondas como justificáveis. Assim seria, desde guerras a actos de terror que sempre invocam um qualquer deus imaginário ou uma suposta supremacia política, moral, étnica ou histórica, e desde outros actos mais circunscritos a outros de âmbito mafioso. Aliás, no mundo cibernético, esta grosseira perspectiva poderia conduzir, irreversível e danosamente, à justificação de qualquer pirataria informática, mediática ou similar em nome de uma suposta estratégia do ‘bem’.
3 - Infelizmente, estas práticas estão a ser crescentemente sujeitas a uma perversa indiferença e anestesiada banalização. Para tal, ‘inventou-se’ um novo arquétipo moral entre os actos bons e os maus: os actos neutros, uma espécie de silenciosa amiba onde se acolhem as maiores maldades. Mas, como há vinte séculos escreveu São Paulo, «não há mal de que provenha bem».
É certo que estas piratarias ‘animam a malta’ por via de voyeurismo mediático repetido até à náusea, alimentam a acefalia social, engordam as fake news e favorecem as adulterações por manipulação semântica ou por rivalidades levadas à obsessão. No caso da devassa de correspondência do Benfica, fazem medrar anjos ressuscitados das trevas e bolsar votos pios de que «na nossa casa é tudo puro», como se alguém acreditasse nisso. A ética vem-se relativizando pela abordagem quantitativa, condicional ou adversativa, de mãos dadas com um oportunista se, mas, talvez, às vezes, salvo se.
Todos - alegados piratas e ladrões, sofridos delatores e relapsos divulgadores, causídicos que vêem ‘gestos cívicos’ em práticas ilegítimas - se deveriam questionar, na sua solidão, sobre o que achariam se, em vez do Benfica ou outras pessoas e instituições, estas práticas os visassem a eles próprios ou a organizações a que estão ligados?
Bastaria que atendessem ao teste do imperativo categórico kantiano, ou seja, ao dever dos deveres: «Age unicamente segundo a máxima que te leve a querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei de tal modo que, se os papéis fossem invertidos, as partes em questão estariam sempre de acordo e a tua conduta seria universalmente válida». O que lhes iria na alma? Achariam que tudo não passava de uma sucessão de escrupulosos ‘actos cívicos’?
4 - Entre as peripécias magiares e o futebol por cá quase dia sim, dia não, o Benfica de Bruno Lage alcançou a quarta vitória seguida (três fora de casa) e não sofre golos há mais de 3 jogos e meio. Em Guimarães e para a Liga, um triunfo saboroso, mas bem sofrido numa segunda parte de grande nível dos vitorianos (ainda que completamente ineficaz, bastando observar que Vlachodimos não fez defesas neste período).
O futebol tem um dos seus paradoxais pontos no primado do instante. Ao virar da esquina, para melhor ou para pior, pode vir um resultado que contrarie uma qualquer série boa ou negra.
Jogar melhor é uma condição necessária para prolongar o sucesso, mas só por si não é suficiente. O certo é que o Benfica de Rui Vitória que jogou em Portimão, Aves e Montalegre provavelmente não teria ganho nenhum dos 4 jogos do Benfica de Bruno Lage.
De um modo directo, não afectado, simples e quase naïf, Bruno Lage reconquistou a alegria de se jogar, redescobriu jogadores postos de lado ou aparentemente incompetentes, sabe fazer substituições com valor acrescido em vez da medíocre rotina do que se chama ‘troca por troca’ e - hélas! - fala de futebol e explica, sem subterfúgios, as suas opções, ao mesmo tempo que evita perguntas tontas ou despropositadas de certas personagens doentias do mundo mediático.
Neste jogo, vimos um excelente Gabriel até agora desaparecido (ainda bem que Lage não ouviu o catedrático Lobo na Sport TV desancar, desde o primeiro minuto, neste jogador) e confirmámos a evidente inevitabilidade de João Félix estar na equipa e não a ver os jogos da bancada. Samaris mostrou que é sempre um recurso a aproveitar. Só continuo a achar que Castillo nada acrescenta.
Ainda agora não consigo entender como é que o árbitro e o VAR acharam que André não mereceu o cartão vermelho depois de uma sarrafada evidente, melhor dito, de duas em uma. Compare-se a intencionalidade e a agressividade escusadas, com a expulsão de Jonas em Portimão. Cadê o critério? Cadê o protocolo do VAR?