Coisas que vão
O ponta de lança, o 10, o remate de longe, a emoção do golo... Não se perdeu demasiado?
J Á tenho idade para me aperceber das coisas que perdi. No futebol, também, e conto cinco. A primeira foi o ponta de lança, alto, mexendo-se pior do que os outros e do qual nos esquecíamos até que a bola lhe batesse. Essa figura, que estava, foi substituída por uma que não está, só aparece.
Um segundo desaparecimento foi o do 10, resumido a uma camisola sem ninguém dentro. Foi desmultiplicado por dois ou três jogadores que andam entre as áreas, iguais entre eles, quase sempre do mesmo tamanho, com tarefas parecidas que desempenham rotineiramente para que tudo seja sempre o mais igual possível. Chamam-lhes 6, ou 8 , ou médios-centro - já não bastava serem médios e ainda são centro, supondo eu que evoluirão para médios-centro-nucleares.
Foi-se o jogador que finta, que arrisca, transformando-se, para proteger a equipa, em alguém que, se for bom, não perde a bola com disparates.
Vai-se também o golo de fora da área - na Premier League desceram de 182 para 129 por época nos últimos 15 anos, uma quebra de 30 % - porquanto quem o podia tentar prefere agora lateralizar ou atrasar, vendo balizas noutros sítios. Temporizam, diz-se.
Com o advento do VAR, foi-se também grande parte do festejo do golo. Pelo menos na emoção que tinha antes, porque não é um processo explosivo em nós, é apenas um rastilho. O golo de hoje festeja-se como antes se festejava o penálti a nosso favor: pode ser que dali resulte golo.
Há ainda o público, uma sexta coisa que agora foi, mas voltará. A multidão é uma solidão na qual procuramos uma coisinha boa, nem que seja achar piada às ordinarices que ouvimos dos bancos pela transmissão televisiva.
Estar é aparecer. Criar é equiparar. Arriscar é proteger. Chutar é lateralizar. Festejar é esperar. Multidão é solidão. Assim organizo o que perdi.