Coentros e... Coentrão!...
O TAD não faz leis, nem regulamentos, limitando-se a aplicar as leis e os regulamentos, quando estes não são inconstitucionais ou ilegais
SÓ em 13 de Janeiro de 1990 foi publicada a Lei de Bases do Sistema Desportivo — a Lei 1/90 que veio estabelecer o quadro geral do sistema desportivo, tendo por «objectivo promover e orientar a generalização da actividade desportiva, como factor cultural indispensável na formação plena da pessoa humana e no desenvolvimento da sociedade». Foi, pois, esta a lei que revogou o Decreto nº 32 946 de 3 de Agosto de 1943 (ainda eu não tinha nascido) e a Lei nº 2104, de 30 de Maio de 1960 (tinha eu 13 anos).
Aquele decreto promulgou o regulamento geral da Direcção-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar; por sua vez, a lei referida promulgou as bases para a classificação dos praticantes do desporto como amadores, não amadores e profissionais. Estas leis, promulgadas durante a ditadura de Salazar, continuaram em vigor após o 25 de Abril, o que significa que, durante 16 anos, o movimento associativo conviveu sem protesto com essa legislação.
Curiosamente, 21 dias antes da revolução de Abril — 4 de Abril de 1974 — foi proferido um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, cujo sumário rezava assim:
I — As decisões dos conselhos jurisdicionais só são susceptíveis de recurso para a Direcção-Geral dos Desportos e para o Ministro da Educação Nacional nos casos em que a lei o preveja. II — De conformidade com o disposto nos artigos 80, paragrafo 1, e 82 do Decreto-Lei n. 32946, de 3 de Agosto de 1943, só são passiveis de recurso as decisões que versarem matéria disciplinar, ou seja, por infracção às normas de correcção desportiva.
Como se pode ver, quase cinquenta anos depois, a mentalidade continua a mesma, e ainda há quem proponha isto como futuro, esquecendo que a revolução trouxe uma nova Constituição para substituir a de 1933.
Presidente da Liga, Pedro Proença defende que o TAD não devia existir
Mas voltando à Lei 1/90 importa referir o que a mesma estabelecia em matéria de justiça desportiva — epígrafe do artigo 25º — que «as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo são impugnáveis nos termos gerais de direito», sem prejuízo de não serem impugnáveis, nem susceptíveis de recurso fora da instancias competentes na ordem desportiva, as deliberações e decisões sobre questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de natureza disciplinar.
Na sequência desta lei, o Governo decretou o regime das federações desportivas — Decreto-Lei 144/93, de 26 de Abril — que, em matéria de regime disciplinar, as federações deviam prever, entre outros princípios, «a exigência de processo disciplinar, para a aplicação de sanções, quando estejam em causa infracções qualificadas como muito graves e, em qualquer caso, quando a sanção a aplicar determine a suspensão de actividade por período superior a um mês»; consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; garantia de recurso, seja ou não obrigatória a instauração de processo disciplinar». Por muito que custe a acreditar, ainda hoje estes princípios são violados com frequência, não obstante tais princípios se manterem no actual regime jurídico das federações desportivas, sendo aliás basilares de qualquer Estado de Direito.
A Lei 1/90 foi revogada pela Lei 30/2004, de 21 de Julho — Lei de Bases do Desporto, que em matéria de justiça desportiva manteve os mesmos princípios de impugnabilidade, mas previa já o recurso à arbitragem desportiva, como uma via para a resolução de conflitos desportivos.
Foi curta a vigência desta Lei, revogada que foi pela Lei 5/2007, de 16 de Janeiro — Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, que aliás manteve os mesmos princípios das leis anteriores em matéria de impugnação dos actos. Contudo, o seu artigo 18.º foi revogado pelo artigo 5.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, justamente a lei que criou o Tribunal Arbitral do Desporto e aprovou a respectiva lei.
Face à publicação da Lei 5/2007, foi necessário alterar o regime jurídico das federações desportivas, o que aconteceu através do Decreto-Lei 248-B/2008, de 31 de Dezembro, e do Decreto-Lei 93/2014, de 23 de Junho, este último já depois da lei que criou o Tribunal Arbitral do Desporto.
Convém lembrar aos mais distraídos, em matéria de celeridade processual, quando se trata dos outros, que o novo regime veio estabelecer que «as decisões do conselho de disciplina devem ser proferidas no prazo de 45 dias ou, em situações fundamentadas de complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respetivo processo». Na verdade, antes de alguém falar sobre celeridade processual para acusar os tribunais, bom seria que olhasse para dentro da sua própria casa (ou casas) e tivesse o discernimento, a honestidade e a humildade de reconhecer que é lá que a lei é violada em termos de prazos processuais.
Não são os tribunais que não deviam existir; o que não devia existir eram prescrições, que a maior parte das vezes são cirúrgicas, isto é, segundo os interesses e conveniências dos respectivos arguidos. Quem aceita tais situações, não tem autoridade moral, para falar em celeridade. Célere devia ser a reconhecer a vergonha e a pedir desculpa!...
Por outro lado, o regime jurídico das federações desportivas continua a consagrar os princípios gerais em matéria disciplinar acima referidos, como aliás não podia deixar de ser, já que o contrário seria um retrocesso, além do mais, civilizacional.
Estas noções gerais que acabei de expor são normalmente omitidas, não por ignorância, mas por pura má fé, com o único objectivo de lançar a confusão e assim branquear a sua incompetência e incapacidade para lidar com o Estado de Direito, enquanto dirigentes e titulares de pequenos poderes, que alguns, com propriedade, classificam de capelinhas. Portugal é, de resto, um país de muitas capelinhas e poderes parolos!...
São as federações e as ligas quem, em primeira instância, aplicam os regulamentos que elas próprias elaboram, sejam eles substantivos ou meramente processuais. Fazem a festa, deitam os foguetes, mas não vão apanhar as canas, para continuar a iludir o pagode, muitas vezes com a ajuda da comunicação social, que critica a brandura das normas, sem ir ao fundo da questão: os que fazem os regulamentos e as leis.
Fala-se muito, e com razão, nos deputados que são eleitos para defesa dos interesses privados, e não dos interesses gerais do povo que dizem representar. Nas federações, designadamente, na FPF, com manifesta violação da lei, a composição da assembleia geral é um exemplo flagrante de que a representação não é a do interesse global, mas de sectores corporativos, com outros objectivos e outros interesses.
Na verdade, queixam-se que as sanções e penas são muito leves o que convida a prevaricação. E eu pergunto: esperavam que os sindicatos dos jogadores e dos treinadores aprovassem regulamentos com duras multas e suspensões; que a APAF desse o seu aval a castigos exemplares para os seus associados; que os dirigentes levantassem a sua voz para impor multas e sanções pesadas para os seus clubes? Podem esperar sentados, porque enquanto isto for assim, não há volta a dar: o crime compensa!
Já se percebeu há muito tempo que a apreciação da justiça desportiva se resume à velha afirmação de que o rei vai nu, sem que alguém faça o que quer que seja para lhe pôr, pelo menos, umas cuecas, e assim tapar as vergonhas.
O Tribunal Arbitral do Desporto não faz leis, nem regulamentos, limitando-se a aplicar as leis e os regulamentos, quando estes não são inconstitucionais ou ilegais. Em via de recurso, e na maior parte dos casos, das deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas.
Uma apreciação séria e dominada pela honestidade intelectual do estado da justiça do futebol em Portugal, não começa, seguramente, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, que não faz parte do velho sistema (que permanece), mas, pelo reconhecimento, que o movimento associativo desta modalidade se mostra incapaz de se reformar a si próprio, e, aí sim, terá o Governo de intervir, como pede Pedro Proença.
O coentro é uma planta que se usa como tempero ou condimento, e que exala um odor característico; coentrão e prescrição são condimentos da justiça do futebol que exalam também um cheiro característico que, francamente, não é bom. Mas há quem goste e aí é que está o mal!...