Beijo da vida

OPINIÃO10.06.202003:00

Com o inesperado empate cedido em casa pelo Benfica, Pinto da Costa não só recuperou a verve como se apresentou a votos na liderança do campeonato e, mais importante, com o FCP a continuar a depender de si próprio. O presidente em exercício há 38 anos ganhou as eleições com uma votação significativa (68,65%) dado o momento soturno que o clube atravessa, embora não se possa ignorar o significado dos 26,44% alcançados pelo candidato José Fernando Rio. Pinto da Costa avança para o 15.º mandato consecutivo e terá 86 anos (42 de presidência) em 2024. El Comandante Fidel Castro governou Cuba durante 59 anos (1959-2008), como primeiro-ministro e depois como presidente, e tinha 81 anos quando, enfraquecido pela doença, decidiu passar a pasta ao irmão Raúl.  
Pinto da Costa continua na luta, mesmo que o FC Porto atravesse o pior momento financeiro e desportivo do seu magistério (anotem: em 37 épocas completas, só por quatro vezes o FCP terminou sem ganhar qualquer título no futebol… e três delas ocorreram nos últimos cinco anos). Mas é de facto impressionante a quantidade de vezes nos últimos tempos que o Benfica, por culpa própria, desperdiçou a oportunidade de encostar o FCP às cordas - ou estendê-lo no tapete. Foi o penta falhado em 2018, que evitou a Pinto da Costa aquele que teria sido a maior amargura desportiva da sua carreira; e foram os dois jogos nesta época: não é difícil adivinhar que o Benfica teria deixado o FCP em muitos maus lençóis (vinha de uma derrota com o Gil Vicente e da imperdoável eliminação com o Krasnodar, 40 milhões a voar…) caso tivesse ganho o clássico na Luz a 24 agosto passado (… e perdeu por 0-2, com amasso incluído); como não é difícil adivinhar que o Benfica, tendo-se apresentado no Dragão a 8 fevereiro com 7 pontos de avanço (!), teria caminho escancarado para o título se ao menos tivesse pontuado (… e perdeu por 2-3). Agora, foi o nulo (com uma 1.ª parte inaceitável pela falta de pica e de ambição…) com o Tondela um dia depois de o FC Porto lhe «oferecer» a liderança numa bandeja. Não sei se é trauma, mau karma ou mau olhado. Ou simplesmente incompetência continuada. Sei é que o Benfica anda a especializar-se no beijo da vida sempre que a cara do Porto começa a parecer-se com a de um moribundo. Há dias comentava isto com um conhecido dirigente benfiquista de outras eras (um cavalheiro) e ele deixou escapar: «Não se percebe como o Benfica, mesmo estando a dominar, não se consegue libertar dos complexos do tempo em que o Porto era hegemónico… O Benfica anda a falhar as vitórias que o Porto, em circunstâncias idênticas, nunca perdoava.» Ver-se-á mais logo, no final do primeiro jogo do 15.º mandato - com o Marítimo -, se Pinto da Costa continua a ter motivos para sorrir.

A ira de Vieira. O presidente do Benfica ficou justificadamente furioso com o resultado e a exibição com o Tondela e chamou «ingratos» aos jogadores. O raciocínio não é difícil de adivinhar: ele é o único presidente que tem pago tudo a tempo e horas e a equipa responde daquela maneira mole e pouco convicta 24 horas depois de o rival perder e facilitar o assalto à liderança. O problema foi que, antes do ralhete de Vieira, bandidos atacaram o autocarro do Benfica à pedrada, ferindo dois profissionais; e pintaram obscenidades e ameaças nas casas de mais alguns e do treinador. Um ataque a Alcochete em versão soft que deixou marcas de forte e compreensível perturbação no seio da equipa e do próprio benfiquismo, a partir do momento em que se percebeu que o ataque pode ter sido executado por elementos mais radicais dos tristemente famosos No Name Boys, um «grupo organizado de adeptos» que tem arrastado o nome do Benfica pela lama e de quem a direcção do clube já se devia ter demarcado de forma clara e explicita há muito tempo. É claro que em face da gravidade do ocorrido - um caso de polícia que urge esclarecer com rapidez - passaram para segundo plano o tropeção com o Tondela e a incapacidade revelada por Bruno Lage nesse jogo de motivar a equipa para um jogo que podia ter sido crucial; até porque logo a seguir o jornal Público trouxe à luz novos dados sobre a relação entre Benfica e Aves no que a transferências e outras operações diz respeito. O Benfica reagiu através de comunicado dois dias depois, dizendo que todas as operações e cláusulas reveladas estão tão dentro dos limites da lei como aquelas que FC Porto tem negociado com o Portimonense.
O que está aqui em causa, acho que toda a gente percebe, é a inaceitável relação vassalo-suserano a que certos clubes mais pequenos se sujeitam por motivos de vária ordem que não deviam ter cabimento no quadro do futebol profissional: necessidade financeira pura e dura; conveniência estratégica (acham eles); desejo de estar bem com quem reconhecidamente detém o poder de influenciar, de decidir, de emprestar, de facilitar…; e outros interesses mais difíceis de confessar.