As contas do Benfica num dia de jogo de contas

OPINIÃO15.09.202004:00

1 - Contas são contas. Que se devem analisar, comparar, detalhar. Mas que bem podem dispensar a corte de ditos expandidos no minuto seguinte à sua publicitação. Não muito longe do que se passa, a nível nacional, e que sempre me espantou: saem as centenas de páginas de um Orçamento do Estado e não é que logo a seguir ouvimos, vemos e lemos doutas análises do documento que ainda não se analisou! Até fico com inveja deste repentismo, pois para tecer algumas considerações sobre contas de sociedades ou sobre o Orçamento público preciso de ler com atenção, sem ser em diagonal. Falta-me a perspicácia do adivinho, a rapidez do leitor de sumários e índices, a ortodoxia do convencido que já tem a opinião seguríssima ainda e sempre antes de tudo. Paciência, direi.

2 - Este é o tempo em que são tornadas públicas as contas das SAD de futebol cotadas na Bolsa e sujeitas à supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Nesta crónica procuro explanar, ainda que brevemente, algumas considerações sobre as contas da Benfica SAD, pois é para estas que, em primeiro lugar, a minha atenção está sempre virada.

Assim, e em primeiro lugar, importa salientar que a Benfica SAD é a única das SAD dos três chamados grandes que cumpre o preceituado no artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais, ou seja, a exigência de ter capitais próprios não inferiores a 50% do capital social. O mapa é absolutamente elucidativo sobre a saúde (ou falta dela) destas SAD, por mais, que na discussão frenética e emocional, se procure desvalorizar este índice decisivo.

Embora os exercícios não sejam totalmente comparáveis por força de alterações de balanço e de aspectos contratuais entre a Benfica SAD, a Estádio SA e a Benfica SGPS (aliás, explicados no Relatório), trata-se do 7.º exercício anual consecutivo com resultados positivos, diminuição do passivo, aumento do activo e crescimento das receitas operacionais, o que parece evidenciar uma linha de evolução sustentada.

Quanto aos rendimentos operacionais de €140 M - excluindo valores resultantes de transferências de atletas - é de salientar o seu continuado aumento (o valor ora alcançado é 60% superior ao de há 7 anos, época 2013/2014), com a excepção do ano passado em que se alcançaram €145 M. A diminuição explica-se, neste caso, pelos efeitos directos da pandemia, pois que €9,2 M de receitas de televisão e de patrocínios só foram contabilizados após o reinício do campeonato e fecho das contas anuais (Julho) e 1,6 milhões de euros referentes a compensações concedidas aos titulares de red pass, pelo facto de não haver público no estádio. Além disso, sem pandemia, haveria ainda a receita de bilheteira dos 5 jogos efectuados na Luz.

Para além dos rendimentos de transmissão de jogos, tornou-se muito importante para a sustentação do modelo actualmente seguido, o valor alcançado com as receitas europeias, leia-se Champions. Mesmo num ano pouco conseguido nesta competição como foi 2019/2020, estas receitas representaram mesmo assim 22% do total corrente. Sendo que, para a próxima temporada, estão substancialmente alargadas as possibilidades da representação portuguesa na Liga dos Campeões (campeão e vice-campeão e terceiro classificado no play-off), o risco no próximo futuro de não obter estas receitas decresceu. Este ano, porém, é necessário ultrapassar duas barreiras, a começar pelo jogo de hoje na Grécia. Por aqui se pode ver a sua importância directa (nem sequer falo dos efeitos positivamente colaterais de montra de jogadores), pelo que, cada vez mais, é necessário ter um plantel que por cá ganhe e lá fora seja valorizado.

Do lado dos custos, há até uma ligeira diminuição face ao ano anterior (-1,3%). No entanto, pelo facto de as receitas operacionais terem tido o decréscimo atrás justificado, houve uma deterioração do ratio custos operacionais/receitas operacionais de 60% para 69% ficando agora no limiar dos 70% estabelecidos numa das seis regras do fair play financeiro da UEFA.

Quanto ao balanço, apenas refiro o valor relativamente minimal do passivo financeiro, constituído por €38 M de dívida bancária, quase toda corrente e €59 M de empréstimos obrigacionistas. No total passou-se, num ano, de €145 M para €97 M, ou seja, uma diminuição de 1/3. Para tal, muito contribuiu a transferência de João Félix (e a totalidade do seu pagamento), pois possibilitou o reembolso antecipado de uma série obrigacionista, bem como uma outra no respectivo vencimento, num total de €73 M, situação ímpar face ao que (não) se passou nos clubes rivais.  Também importante é a tendência reforçada da alteração da estrutura dos empréstimos obtidos, aumentando a parte não corrente (67% agora, 64% em 2018/2019) e diminuindo o seu valor de curto prazo, o que é importante, mormente do ponto de vista do serviço da dívida. Já os juros suportados passaram de €14,3 M para €13,4 M (- 6,3%), o que é bom, embora continue a ter um peso ainda significativo de 9,5% sobre os resultados operacionais, ainda que longe de anos transactos (por exemplo, 3 anos atrás, o peso era de 15,5%). As contas em 30/06 ainda não reflectem, evidentemente, o novo empréstimo obrigacionista concretizado em Julho no valor de €50 M.

3 - Uma pergunta que sempre se pode colocar é a seguinte: João Félix foi transferido por €120 M e o resultado líquido de impostos positivo do exercício foi de apenas €41,7 M. Onde se consumiu a diferença? A análise da Demonstração Global de Resultados dá-nos indicações, mas também levanta questões. Assim, parte daquela diferença foi para financiar o resultado operacional sem direitos de atletas, que foi negativo (-€32 M, quando no ano anterior havia sido de apenas - €1,3 M), parcialmente devido aos já referidos efeitos do Covid-19, mas longe de explicar o agravamento desta rubrica em mais de €30 M, o que exige aturada reflexão. Por outro lado, ainda que tenha havido uma diminuição de gastos com pessoal (incluindo atletas) de €2,5 M, há um aumento de Fornecimentos e Serviços Externos (em termos líquidos), devido à licença (mais €2,5 M) sobre a marca Benfica (royalties) «significativamente influenciado pelo montante dos rendimentos obtidos com as transacções de direitos de atletas, quando comparado com o do período homólogo» (Cf. Pg. 132 do Relatório). Já €19,4 M de custos dizem respeito a comissões e outros gastos com transacções de direitos de atletas, o que representa uma elevada percentagem de 13,4% dos rendimentos com aquelas transferências. As restantes explicações prendem-se com amortizações e provisões (€11 M), com amortizações de direitos de atletas (€36 M), ou seja, o reconhecimento dos gastos incorridos com a aquisição dos direitos dos jogadores, capitalizados pelo respectivo período contratual, com perdas de imparidade de direitos dos jogadores (€3,7 M) ligadas aos direitos de atletas cuja recuperabilidade é arriscada ou cuja perda se efectivou aquando de rescisão do contrato. Por fim, há a circunstância fiscal de, para este ano, haver IRC a pagar (€4,8 M).

4 - Se, na leitura, conseguiu chegar até aqui, convido os mais resistentes a fazerem a sua análise SWOT (em português, forças e fraquezas, oportunidade e ameaças para o próximo futuro). Pela minha parte, apenas concluiria que, sendo indesmentível a saúde da Benfica SAD quando comparada com a do princípio deste século e quando confrontada com a situação condicionada do FCP e SCP, há pontos que merecem ser mais ventilados, discutidos e escrutinados. Refiro-me à dependência muito grande da Champions e da carreira europeia face à folha salarial do plantel, à vulnerabilidade de remédios de curto prazo para uma hipotética situação de deterioração operacional, ao valor muito elevado de comissões e afins (aspecto ele próprio pandémico por cá e no mundo do futebol, com todas as hesitações da FIFA e UEFA para estabelecer regras e tectos de moderação), e à necessidade de conjugar o risco que sempre existe em transacções de passes com a oportunidade dos mercados e preços compatíveis não só no momento da decisão, mas acautelando os anos seguintes de amortização dos custos. São estes e outros aspectos que gostaria fossem discutidos antes das próximas eleições, com elevação e aderência à realidade.

5 - Hoje é o dia decisivo para o Benfica ultrapassar o primeiro obstáculo europeu. Estou convicto que esta é mesmo a partida determinante, pois o Krasnodar a duas mãos será menos arriscado. Esta noite, joga-se numa só mão, em casa do adversário. Imposição abusiva e anti-desportiva da UEFA. Por que razão - sem a possibilidade de haver público - não se realiza o jogo único em campo neutro? E, em caso de empate, os golos fora não desempatam, ao contrário do que sempre determinam as regras da competição.  Onde está a lógica?