Antes de Jesus não era o deserto…

OPINIÃO26.11.201903:00

Começando pelos mais fracos, quero confessar o prazer que me deu ver jogar o Vizela, líder da Séria A do Campeonato de Portugal, com intensidade competitiva, disciplina tática e organização estratégica, condimentos supremos para um banquete futebolístico para consumir e  repetir. Velocidade com método, que nada teve a ver com correrias loucas sem sentido, agressividade dentro dos limites, disponibilidade permanente, pressão constante, circulação de bola em velocidade, como impõem as boas práticas, e ataque trabalhado à baliza do Benfica, com relevante precisão no remate, porque  entre rematar muito e bem há uma diferença abissal.

Não conheço pessoalmente Álvaro Pacheco, nem isso é importante. Está a construir uma carreira como treinador principal depois de alguns anos como adjunto de Miguel Leal, uma boa carta de recomendação. Neste primeiro teste com dimensão mediática ficou aprovado com distinção. Até na forma cuidada  como escolheu as palavras na análise ao jogo. Outro qualquer ter-se-ia  aproveitado do nome do adversário para se colocar em bicos de pés. Álvaro Pacheco recusou esse protagonismo de ocasião. Falou com discrição e elegância, valorizando o desempenho dos seus jogadores e enaltecendo a atitude de duas equipas. «Foi um grande jogo, mas o próximo é que será o jogo das nossas vidas», alertou. Como todos os próximos jogos, acrescento eu. Um dia destes, vemo-nos por aí.

Ainda a propósito deste Vizela-Benfica - o futebol cá de casa  ficou sem sinal no fim de semana por culpa das honrarias ao fenómeno Jesus -, Bruno Lage não deve dormir tranquilo com o Leipzig tão próximo e com uma defesa que não intimida, um meio-campo que não corre (Gabriel está um desastre) e um ataque que não produz  para aquilo que custou. As perspetivas nada prenunciam de animador se nenhuma medida for tomada para pôr na ordem quem por ali anda com aparente pouca vontade de sacrifícios.

A elogiada participação de Jota voltou a dar a razão a quem, como eu, entende que é mil vezes preferível ajudar miúdos  talentosos a crescer do que gastar tempo e dinheiro com adultos sem nada para oferecerem e este plantel encarnado precisa de uma remodelação profunda.

Lage tem um crédito inestimável por força daquilo que ganhou em tão pouco tempo e, no entanto,  gastam-se horas de programas e sucedem-se escritos infindos a incomodá-lo com a sombra do novo fenómeno. Porquê? Talvez por não se sentir com vocação para feirante, o que não quer dizer que  não tenha de produzir o barulho necessário para deixar de ser visto como jovem estudioso, educado e aprumado e passar a ser olhado como treinador de corpo inteiro e de má cara, embora tolerante, que respeita todos os mestres do mesmo ofício, mas que também é capaz de dizer coisas a quem não o respeitar. No volátil mundo do futebol, sofrer para dentro não é solução que se recomenda.

EM semana de competições europeias, a tarefa é ingrata para o Benfica. A seguir à pálida imagem em Lyon, não se vê como esperar uma revolução exibicional amanhã,  em Leipzig.  O Benfica  europeu era temido em todas as paragens porque, geralmente, ganhava, mas o atual, geralmente, perde.  

Na Liga Europa, o FC Porto tem viagem decisiva à Suíça para defrontar o Young Boys. Por cá, SC Braga e  Sporting podem reforçar a liderança nos grupos e garantir a passagem à fase de eliminatórias. Os bracarenses recebem o Wolverhampton e os leões o PSV. Ao Vitória de Guimarães, com um empate em quatro jogos, em grupo forte,  cabe-lhe, no mínimo, acertar contas com Standard de Liège. 

O objetivo comum, porém, é  somar pontos  e consolidar o sexto lugar no ranking da UEFA que muito custou a recuperar.

Admito fazer parte de uma minoria, tal como Bernardo  Silva. Não sou amigo de Jesus, nem ele é meu amigo. É assim que deve ser, amizades de um lado, relações profissionais de outro. Há muito mérito no seu percurso vitorioso no Brasil. Reconheço-lhe  a coragem de aceitar desafio de enorme complexidade em meio hostil.  Mas triunfou e, com as suas conquistas, diluiu-se, finalmente,  a falsa ideia que durante anos foi lei, entregando-se o dom da sabedoria aos treinadores brasileiros e o da ignorância aos portugueses.

Jesus provou no tribunal do povo  que é exatamente ao contrário: o treinador brasileiro ficou para trás e o português jamais deixou de evoluir. Hoje, se alguém pode aprender com alguém são eles connosco e não o contrário.

Escrito isto,  curvo-me, curvamo-nos, diante de Jesus no país de Pelé, que, desde o tempo de Eusébio, por causa dos ciúmes, sempre nos olhou de cima para baixo.

Perante esta indescritível euforia, a que o nosso Presidente se quis associar com alvitres de condecorações, recordo, no entanto,  que antes de Jesus chegar ao Brasil não era o deserto. Artur Jorge foi  o primeiro treinador português campeão europeu.  José Mourinho foi o segundo,  em dose dupla, além de Manuel José, quatro Ligas dos Campeões Africanos, Jesualdo Ferreira, Vítor Pereira, André Villas Boas, Paulo Fonseca, Leonardo Jardim, Paulo Sousa e outros que me escapam, todos eles com carreiras internacionais tituladas. Sem esquecer o maior de todos: Fernando Santos,  que fez  do país Portugal campeão da Europa e vencedor da Liga das Nações.