Algumas verdades inconvenientes...

OPINIÃO02.03.202003:00

OS clubes portugueses estão cada vez mais longe dos emblemas dos melhores campeonatos europeus, e cada vez mais ao alcance de equipas que são da gama média-baixa da UEFA.


Contrariando o discurso oficial, que vende fumo e propagandeia ilusões de grandeza, de há alguns anos a esta parte tenho vindo a alertar, nas páginas de A BOLA e nos programas de A BOLA TV, para uma realidade que só não vê quem andar completamente cego por promessas vãs. Os principais emblemas portugueses enfraqueceram-se, passaram a dispor de jogadores de menor valia, e perderam-se no contexto internacional. Porque, enquanto, por cá, pouco ou nada se fez, lá fora foram tomadas medidas estruturais no sentido do desenvolvimento do futebol, que estão a dar frutos. Para Portugal, daqui em diante, o assunto não será medir forças com Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália ou França, mas sim não perder o comboio em que embarcaram países como a Áustria, a Suíça, a Escócia, a Bélgica e a Holanda, sem falar de casos como a Rússia (que introduziu medidas protecionistas, limitando o alcance dos principais clubes) ou a Ucrânia (a braços com as sequelas de uma guerra que impedem o desenvolvimento) que a qualquer momento podem emergir, ultrapassando-nos.

Antes
e agora

MAS, comecemos pelos três grandes, aqueles que têm mais responsabilidades e que agregam pelo menos 90 por cento dos adeptos portugueses.
Comparemos os onzes que hoje representam estes clubes, com aqueles que na última década vestiram as mesmas camisolas.
Lembremos, por exemplo, a equipa do Benfica que perdeu a final da Liga Europa para o Chelsea, em 2013: Artur; André Almeida, Luisão, Garay e Melgarejo; Matic; Salvio, Enzo Pérez e Gaitán; Rodrigo e Cardozo (e no banco, Jardel, Aimar, André Gomes e Lima). Há comparação com o tempo presente?
E o FC Porto que venceu, em 2011, a final da Liga Europa: Helton; Sapunaru, Rolando, Otamendi e Álvaro Pereira; Fernando, Guarín e Moutinho; Hulk, Falcão e Varela (e no banco James Rodríguez!).
E a equipa do Sporting de Jorge Jesus: Rui Patrício; João Pereira, Coates, Ewerton e Jefferson; William, Adrien e João Mário; Gelson, Slimani e Bryan Ruiz.  
Haverá alguém capaz de dizer que não houve desinvestimento, que Benfica, Sporting e FC Porto não desceram vários patamares na escala da qualidade?
E porquê?
Essencialmente, porque o futebol mudou e não houve, em Portugal, a capacidade para perceber esse fenómeno. Exclusivamente preocupados com o umbigo, os clubes nacionais desperdiçaram-se em guerras de alecrim e manjerona, e nunca vislumbraram que era mais importante o que os unia do que aquilo que os separava. Assim, fazendo da conquista da I Liga o centro do universo, esqueceram-se de que lá fora o mundo continuava a pular e a avançar, indiferente à mesquinhez interna que fez medrar, enquanto os clubes feneciam, estruturas de comunicação talibanizadas, que infligiram danos gravíssimos ao nosso futebol, ao mesmo tempo que setores importantes da comunicação social se dispuseram a servir de caixa de amplificação ao que de mais baixo a clubite tinha para oferecer.

A Europa
mudou

COMO mudou o futebol de Badajoz para lá, enquanto, dentro de fronteiras, os clubes lusos pararam no tempo?
Na última década, países como a Espanha, a Itália e a França aderiram ou aprofundaram a centralização dos direitos televisivos, criando riqueza que distribuíram com sucesso, aumentado a competitividade; e noutras paragens, nomeadamente Inglaterra ou Alemanha, onde essa prática estava já institucionalizada, foram capazes de otimizar o sistema, dotando os clubes de meios para fazer face à crescente elitização das provas da UEFA. Não é preciso recuar muito no tempo para ter memória da patética discussão, em Portugal, em torno da  renegociação dos direitos televisivos, cada presidente a vir a terreiro dizer que tinha conseguido um contrato melhor do que o vizinho, sem que nenhum deles cuidasse do desenvolvimento global do negócio.
E este é um ponto fulcral para explicar o retrocesso nos últimos anos: enquanto que o clube mais bem pago de Inglaterra recebe menos de duas vezes mais do que o mais mal pago, a diferença por cá entre o topo e a cauda desse ranking é de vinte (!!!) vezes. E querem o quê dos jogos da I Liga? Ópera? Levam a maior parte das vezes com fado vadio, e só têm o que merecem.    
Enquanto os clubes não encontrarem uma plataforma comum para otimizarem recursos (e isso é cada vez mais improvável, porque muitos deles já anteciparam receitas televisivas dos próximos anos...), a tendência será de manter a perda face a uma Europa que é capaz de pensar e organizar-se.
Dezoito clubes?

MAS há mais: dezoito clubes na I Liga, no atual contexto do futebol português, é uma porta escancarada ao mau futebol e à fraca competitividade. Há uns anos, no consulado de Mário Figueiredo na Liga, foi realizado um debate amplo sobre esta matéria, estiveram cá especialistas internacionais que tinham ajudado outros campeonatos a reinventarem-se com sucesso, e o  modelo que defenderam acabou por ser chumbado liminarmente pelos clubes. Porquê? Porque contemplava uma I Liga com 12 competidores, que jogariam entre si a duas voltas (22 jogos); depois, os seis primeiros e os seis últimos levavam os pontos obtidos  na primeira fase e faziam duas séries, uma para jogar para o título e a outra para a manutenção (10 jogos). O campeão seria encontrado com 32 jogos, em vez dos 34 atuais, e o aumento da competitividade seria exponencial. Como cada clube pensou em si, e não na indústria do futebol, ou, sequer, na satisfação do adepto, o projeto não passou do papel. Por isso é que estamos como estamos e vemos países que alteraram o modelo competitivo (Bélgica, Escócia, Áustria, Grécia, Suíça...) a morder-nos os calcanhares.

Braga
e os outros

PARA além dos três grandes, em Portugal há clubes com tremendo potencial, que precisam do impulso da centralização dos direitos televisivos.
O SC Braga tem feito um notável trabalho ao nível da organização e das infraestruturas, já descolou dos restantes, e se recebesse da TV o que realmente vale, entraria sempre na corrida pelo título. Mas é o único: o Vitória SC de Guimarães ainda precisa de encontrar a fórmula certa para capitalizar o facto de estar na única cidade-clube do país; ao Rio Ave, que tem trabalhado muito bem, faltam meios financeiros para alavancar outras ambições; o Marítimo está longe, desportivamente, do fulgor de outros anos; há também projetos empresariais que carecem de política desportiva e outros, que fazem milagres e usam fórmulas inventivas (do recrutamento ao modelo de jogo) para se aguentarem na I Liga. Mas, estou certo de que todos eles (mesmo os que não coubessem imediatamente nos 12 primodivisionários ideais), teriam muito a ganhar com o formato competitivo chumbado na Liga (que são os clubes).      
Como se percebe facilmente, a euro desilusão da passada quinta-feira não caiu do céu aos trambolhões. E a má notícia é que, se nada for feito, entretanto, para estancar esta hemorragia competitiva, as coisas só vão piorar.

Políticas erráticas

DENUNCIADOS dois pilares que estão em falência no nosso futebol, a distribuição dos direitos televisivos e o modelo competitivo, há que referir a política desportiva errática que tem estado presente em todo o lado. A aposta na formação é o caminho obrigatório para os clubes portugueses, por razões várias, que vão desde a impossibilidade de comprar no primeiro mercado, à grande capacidade dos técnicos em desenvolver e potenciar valores. Mas um centro de formação de futebolistas não é uma fábrica de pregos e parafusos, onde a produção é sempre igual. No futebol, há anos piores e anos melhores e nunca se deve esperar que os jovens saídos da formação  sejam a solução para todos os problemas, essencialmente porque, antes de ajudarem, precisam de ser ajudados. Complementarmente com a formação está a prospeção e só a montante de ambas as aquisições cirúrgicas. E estas, para serem eficazes, nunca podem ficar circunscritas à lista de disponibilidades ou aos preços de ocasião dos empresários. Porém, quanto mais fracos os clubes estiverem, mais vulneráveis são à vontade dos intermediários...
Finalmente, o que pode fazer a Direção da Liga, além de tentar sensibilizar os clubes? Pouco ou nada. Porque, se a vontade destes for a de insistir na autofagia e continuar a caminhada para o afastamento da elite do futebol europeu, a causa estará perdida.
Resta o consolo das Seleções Nacionais, que navegam livres dos escolhos que afundam as naus de clubes, e que são um bálsamo para os adeptos e um orgulho para este País tão precisado de melhorar a autoestima.