A vida é muito mais do que um jogo
1 Sabemos bem que «a ira nunca deixa de ter uma razão, mas raramente tem uma boa». Recordei esta frase do Marquês de Halifax (George Savile) ao ver os vidros estilhaçados do autocarro do Benfica, os escritos nas casas de Bruno Lage, Pizzi, Rafa e Grimaldo, os ferimentos em Zivkovic e Weigl e as consequentes referências negativas nos globais meios de comunicação social. O que sei é que a vida é muito mais do que um jogo, o seu frustrante resultado, a nossa profunda desilusão, a nossa clara desolação e a nossa evidente frustração por não termos ultrapassado, como todos ambicionávamos, o Tondela. Neste tempo de pandemia, que nos consome e condiciona, percebemos bem que a vida vivida é o - e não um! - bem precioso e que «o desespero é o maior dos nossos erros». Mas, desde Voltaire, sabemos que ele, o desespero, «ganha muitas vezes batalhas». Poucas mas por vezes ganha. Nada do que aconteceu é justificável. É, aliás, totalmente condenável e determina, em tempo urgente, uma averiguação, e as suas consequências, quanto aos autores, materiais e, se for o caso, morais. Aliás, o que temos de transmitir a todos - a todos mesmo, de equipa técnica a jogadores - não são, apenas, palavras de consolo e de solidariedade. É, acima de tudo, regressarmos ao nosso Alexandre Herculano e dizer, e escrever, e repetir, que «ingratidão é o mais horrendo de todos os pecados». Foram estes jogadores, e estes treinadores, que nos levaram há cerca de um ano ao Marquês de Pombal. Bem sei que se houvesse adeptos no Estádio da Luz o final do jogo frente ao Tondela seria difícil. Os assobios ecoariam, e bem alto, alguns lenços brancos seriam exibidos e frustração tomaria conta das bancadas. A pandemia, com números a crescer de infetados, mas sem alarme nos internamentos e nos cuidados intensivos!, faz com que o futebol se jogue sem público. E sem vozes nos estádios . Mas não se pode permitir, nem tolerar, que se perturbe a vida, se intimide o outro, se agrida a consciência e se ponha em causa o profissionalismo. É que «a grandeza de uma profissão é, antes de tudo, unir os homens». Uma equipa unida é o cimento de uma vitória. De qualquer vitória. Desde logo da dignidade humana!
2 Na semana que agora arranca, e há precisamente 70 anos, o Benfica conquistou a Taça Latina, a antecessora, digo eu, da Liga dos Campeões. É importante dizer que a Taça Latina era disputada pelos campeões de Portugal, de Espanha, de Itália e da França enquanto a denominada Copa Mitropa - expressão que em alemão significa Europa Central - juntava, por exemplo, os campeões de Hungria, Áustria, Checoslováquia, Jugoslávia e, mais tarde, Suíça e Roménia. A Taça Latina de 1950 foi disputada em Lisboa, e no Estádio Nacional, por Benfica, Lazio, Bordéus e Atlético de Madrid. O Benfica conquistara o campeonato com a festa do título a ocorrer à 24.ª jornada - a 23 de Abril - com uma vitória no denominado Campo dos Arcos , em Setúbal, por 5-0! O que importa recordar é que a 10 de junho de 1950 o Benfica vence, nas meias-finais, a Lazio, por 3-0, e disputa a 11 de Junho a primeira final com o Bordéus. E mesmo após prolongamento, não conseguem ultrapassar um empate a três golos. Fica a decisão adiada para um novo jogo, no mesmo Estádio Nacional , que vem a disputar-se a 18 de junho. É um jogo histórico segundo me relatou o saudoso Senhor meu Pai. É um jogo com dois prolongamentos - meia hora primeiro e depois duas partes de dez minutos - e o golo da vitória do Benfica apenas vem a concretizar-se ao minuto 149! O Benfica vence por duas bolas a uma e o que sabemos, e nos legaram, é que alguns benfiquistas não acreditando na possibilidade da vitória foram abandonando as bancadas do estádio. Mas ontem como hoje - e como será também amanhã! - regressaram, num ápice, para comemorar uma conquista singular e vibrarem com a exibição de um troféu que deve ser visto, com tempo, numa obrigatória visita ao Museu Cosme Damião! A vida das paixões conjuga sempre fé com desilusão, crença com desolação, prazer(es) com dor(es). Mas nunca com ataques e ameaças, ódio e punição. E como nos disse um dia Jean-Paul Sartre, «a violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota!» É que vida, esta vida vivida, é muito mais importante do que o jogo, do que um qualquer jogo.
3 A Liga NOS foi retomada e hoje disputa-se em Vila do Conde o último jogo desta nova primeira jornada. O que já sabemos é que nenhum do primeiros classificados ganhou. Futebol Clube do Porto e Sporting de Braga perderam e Benfica e Sporting empataram. Temos duas disputas: a do primeiro lugar e a dos outros lugares europeus. Aqui com cinco potenciais candidatos e com o Benfica, por exemplo, a visitar o Rio Ave daqui a dez dias. E nestas nove jornadas o Futebol Cube do Porto joga cinco vezes no Dragão (uma delas com o Sporting) e quatro vezes fora (uma delas em Braga), enquanto o Benfica joga quatro vezes na Luz (uma delas também com o Sporting e uma outra com o Vitória de Guimarães) e cinco vezes fora (para lá do Rio Ave com Portimonense, Marítimo, Famalicão e Desportivo das Aves). Ainda teremos muita LIGA. Surpresas e desilusões, mais falhanços clamorosos de guarda-redes e grandes momentos de inspiração individual, arbitragens sem erros e justa utilização do VAR. Com a Cidade do Futebol a receber, e bem, jogos desta Liga que ainda é NOS.
4 Amanhã, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional reúne-se em Assembleia Geral extraordinária com uma ordem de trabalhos que inclui alterações temporárias ao Regulamento de Competições - como as cinco substituições que já deveriam estar em vigor num futebol normal! - e discussão do modelo de governação da Liga. Acredito que haverá participantes que acreditam no quanto pior melhor. Espero que algumas dessas cansativas vozes repitam em sede de Assembleia Geral da Federação o que amanhã debitarem em sede de Assembleia Geral da Liga. E espero que a maioria, a larga maioria, saiba distinguir, neste momento, o principal do acessório. E o principal é terminar a presente edição da ainda denominada Liga NOS e dar um claro sinal à Europa do futebol que não só tivemos condições para a efetiva retoma como temos todas as condições, organizacionais e de suporte institucional, para recebermos em Portugal, no pico deste verão, finais de competições europeias de futebol. E quem não souber distinguir o principal do acessório terá que ter presente as palavras do nosso imortal Padre António Vieira: «Muitos cuidam da reputação mas não da consciência!»