A solidão de um treinador

OPINIÃO30.06.202004:00

1 Quando os resultados são negativos e o que se ambiciona não é alcançado, acontece a impositiva regra consuetudinária pela qual a culpa reside inexorável e unicamente no treinador. Ele é, por regra, o ponto de acumulação de todos os erros e desaires. De resto, mais ninguém costuma assumir nem que seja 1% da responsabilidade. A começar pelos presidentes e directores dos clubes e a terminar nos… jogadores.
Vem isto a propósito dos dias agitados no Benfica, por causa da decepcionante carreira no recomeço da competição. Tudo, mas mesmo tudo, concentrado em Bruno Lage. Idolatrado há poucos meses, com 30 jogos seguidos em que venceu 28 (recorde absoluto em Portugal!), ganhando o jogo fundamental no Dragão na época passada e vencendo três vezes o velho rival lisboeta (duas em Alvalade) por um score agregado de 11-2, é agora o réu, que por tudo responde. O céu virou inferno, sem sequer passar pelo purgatório. Tanta gente e tanto cronista a tecer louvaminhas a Lage e, agora, pedindo, sem apelo nem agravo, a sua condenação. Não deixa de ser igualmente curioso ver tantos jornalistas a reduzir a pó o ouro sobre o qual antes escreveram.
Gratidão é coisa que não existe no futebol. Elegância idem aspas. É o tempo da ‘feira da escolha do novo treinador’, sugerido por fontes nunca assumidas e ampliado pela tabloidização nojenta de certos meios comunicacionais. Ao mesmo tempo, pede-se a um treinador pré-despedido que ainda faça milagres num balneário no qual já não tem condições para liderar seja o que for. Sempre o presentismo no futebol, a trucidar selectivamente a memória. Quis o acaso que este inferno de Lage coincida com a glorificação de Rúben Amorim no SCP. Ponha-se a pau, Rúben! Os que agora o estão a alcandorar a milagreiro serão os que, quando estiver na parte negativa da curva de resultados (o que acontece com 99% dos técnicos e é quase uma lei universal), mais o empurrarão para baixo.

2 O futebol é, por natureza, uma actividade de risco e de ruptura. Em que a efemeridade é rainha e o imediatismo é implacável. E em que o espaço entre os holofotes do sucesso e a solidão do fracasso é uma nesga. Bem sei que a ditadura dos resultados tudo determina, mas custa-me sempre ver a regressão tão fulminante do supremo bestial passar a ínfima besta, transitada em julgado sem contemplações. O valor do reconhecimento esfuma-se na primazia do dia seguinte. É que, como alguém um dia observou, enquanto o sucesso é um assunto público, o fracasso é um funeral privado.
Quanto maior é o sucesso menos nele se pode confiar. Quantas vezes à euforia do sucesso se seguem o isolamento e o esquecimento. Quantos exemplos, até dramáticos, se podem dar num futebol altamente competitivo e pejado de abutres e predadores, e em que não se salvaguarda sequer a ética mínima garantida?
Todos os amantes de futebol têm a sua presumida quota-parte de treinador. E no meio desta torrente de opiniões e formulações, a cultura de despedimento é uma regra. A tão recorrente e contumaz ‘chicotada psicológica’ é, por paradoxal que pareça, um elogio à complexidade humana da profissão. A vida de um treinador é sempre a intrigante confluência entre a presença ausente e a ausência presente. Neste caso do SLB, entre Bruno Lage e Dom Sebastião Jorge Jesus.

3 Fez agora 10 anos (como o tempo se escoa tão rapidamente!) que tive o gosto de prefaciar um livro de Cecília Carmo, com um título que, só por si, diz muito: A solidão do treinador. Fui, agora, revisitá-lo, bem como o texto que então escrevi. Nada mudou e eu também nada mudaria no prefácio.
Ser treinador exige um complexo compósito de saberes. Não apenas do saber cognoscível, como igualmente das sabedorias da experiência vivida, do relacionamento, da autonomia, da liderança, da mudança, do envolvimento, da motivação, da partilha, da adaptação. Saberes que, aliados a valores e princípios comportamentais e relacionais, devem dar um sentido radicalmente ético e deontológico à profissão: integridade de carácter, exigência, sensatez, perseverança, prudência, lealdade, dedicação, exemplaridade, generosidade, autenticidade, ambição, consistência.
Por dentro e para além da função de treinador, estão sempre relações humanas, geracionais, afectivas, familiares. De equilíbrio entre diferentes contextos e intervenientes. É que um treinador é ou deve ser simultaneamente chefe, marido, pai, irmão, conselheiro e guia de jovens em idade de formação e de consolidação de padrões de vida.
Um treinador nos tempos de hoje está constantemente num redemoinho, por vezes mais suave, outras vezes, mais impiedoso. Entre razão e sensibilidade. Sonhos e objectivos. Utopias e medos. Alegria e desolação. Continuidade e ruptura. Pressões e impressões. Meios e fins. Causas e consequências. Incerteza e risco. Árvore e floresta. Substância e circunstâncias.
O futebol faz parte do mercado altamente volátil da sôfrega opinião, pois que é também a exteriorização sobre a relva do que é regra sociológica na sociedade: a facilidade, o repentismo, o subjectivismo, a vulgaridade com que uns ajuízam sobre outros, num turbilhão desgovernado de leviandade, despeito, mediocridade, logo explosivamente injusto. Vivemos uma época onde a etiquetagem das pessoas parece ser implacavelmente ligeira e volúvel.  

4 No momento em que escrevo - antes do jogo no Funchal - a questão condensa-se apenas no dia certo em que é anunciado um novo Messias do clube. Com a mesma pompa e circunstância com que se prolongou e melhorou o contrato de trabalho do actual técnico e se anunciou sem hesitação que «temos treinador para muitos anos» (2023). Enfim, eis a ligeireza, sob a capa de pseudo estabilidade, ao serviço do entusiasmo de ocasião, como é norma geral no futebol.
Neste caso do meu clube, haverá alguém que não veja uma notória descapitalização do plantel, em boa parte sujeito ao modelo de primazia financeira? Ou citando o texto de ontem de José Manuel Delgado, «o Benfica não pode continuar a subordinar o projecto desportivo ao modelo de negócio, quando o que precisa é de ter um modelo de negócio a partir deu um projecto desportivo». LF Vieira disse, inoportunamente, antes da retoma, que sem o maldito vírus, o Benfica iria concretizar a venda de dois passes, presumindo-se que eram Rúben e Vinícius por 100 milhões cada. Haverá equipa que resista a tantas e sucessivas mudança estruturais na equipa? Talvez Lage tenha sido demasiado obediente ou se tenha conformado em ver sair os melhores…
Agora que assistimos ao unanimismo quanto à demissão de Bruno Lage, não alinho nessa vaga mimetista. É claro que também estou muito desiludido com o desempenho da equipa na segunda volta. E, sei que o técnico terá a sua quota-parte de responsabilidade. Mas cadê a dos outros?
Chegados a este ponto, façam o favor de, no seio da direcção do SLB, acabar com esta historieta. Não permitam que se lancem nomes sobre nomes na praça pública, ao mesmo tempo que o treinador ainda em funções luta já sem apoios e, dificilmente, terá sucesso. Não se dêem votos de confiança hipócritas, que, no fundo, são votos de desconfiança. O que se pede, agora, é que o treinador possa sair com a dignidade a que tem direito. Depois, sim, anunciem a «chicotada para um (novo)conto de fadas». E, já agora, que venha um reforço a sério de poucos - mas diferenciadores - atletas, pois que, como diria Toni, «sem ovos não se fazem omeletes», nem na culinária nacional e muito menos na gastronomia europeia.

5 A corporação do jornalismo uniu-se, no estilo de prima-dona, para malhar em Bruno Lage quando este insinuou manobras relativas ao assédio de potenciais concorrentes ao seu lugar. É óbvio que o técnico encarnado não o deveria ter feito, até porque estava no momento muito frágil. Acontece que, há muito, pairavam sobre o seu futuro rumores de assédio de outros técnicos e isso é uma das piores coisas que se podem fazer - em qualquer actividade - para erodir a estabilidade emocional de um qualquer profissional. Depois, pediu desculpa e fez bem. Mas, pelos vistos, não saciou alguns anonimamente visados.  
É claro que percebo a reacção dos media. Só não compreendo a passividade, senão mesmo a comprometida compreensão, para outros treinadores, que, face a perguntas incómodas, tratam os questionantes abaixo do limiar mínimo de respeito e elegância. Nem é preciso citar quem assim é ungido. Basta ver, ouvir e ler, a cada semana que passa, sobretudo depois de um percalço.

P.S. - (depois da derrocada na Madeira). Dignidade de Bruno Lage, ao não colocar entraves à sua substituição. Lucidez de Vieira, ao apresentar-se como único (eu diria principal, mas não único) responsável.