A relatividade do essencial
Depois de muitos dias (e longas noites) de incertezas e inquietações, podemos, enfim, começar a contagem decrescente. O futebol pode, afinal, voltar. Se calhar mais depressa do que os mais pessimistas - ou, até, os mais otimistas... - pensavam. Será no fim de maio. Não deixa de ser, perdoem-me aqueles para quem o futebol é (e se calhar com razão, não nego) a menor das preocupações, uma boa notícia. Uma excelente notícia, diria até. Eu sei que há quem não esteja de acordo. Quem argumente que o futebol não é uma atividade essencial e, por conseguinte, não deveria o Governo ter tanta pressa em permitir-lhe o regresso. Percebo e aceito o argumento. Mas não concordo. Por duas razões - que se calhar, bem vistas as coisas, é a mesma, apenas com a diferença de ser abordada de dois prismas distintos.
A primeira razão é que quem utiliza esse argumento está, naturalmente, a desvalorizar o futebol, tanto na sua importância económica como social. Porque não nos podemos esquecer de que estamos a falar de uma indústria de largos milhões (mesmo num mercado como o português), muitos dos quais acabam, também, nas mãos do Estado. E convém não nos esquecermos ainda que, graças à sua relevância social, o valor financeiro do futebol não se limita ao dinheiro que gera apenas para si, mas também ao que proporciona a vários outros setores de atividade, que sem ele correm risco de empobrecimento e, até, de desaparecimento. Estamos, é bom de ver, a falar de muitos milhares de empregos em causa.
A segunda razão está relacionada com o que atrás escrevi, apenas com um toque mais pessoal. Deixo a questão: se a ordem do Governo é para que todos os setores vão regressando, aos poucos, à normalidade possível, porque causa assim tanta revolta que o futebol possa, também ele, voltar daqui a um mês? Outra: o que é, afinal, uma atividade essencial? Porque o que é essencial para si, caro leitor, pode não ser essencial para mim. Não é? No fundo, para mim, que escrevo sobre futebol e dependo dele para receber um ordenado, por trabalhar num jornal desportivo, claro que o regresso do campeonato é essencial. Seria o mesmo que eu perguntar: hein, vão abrir cabeleireiros, manicures e pedicures? Onde é que isso é uma atividade essencial? Não o faço, contudo. Porque, não sendo essencial para mim (basta olhar para a fotografia que acompanha este artigo para perceber que não preciso de ajuda para tratar do meu penteado), é naturalmente mais essencial do que qualquer outra para quem disso depende para ter um rendimento.
É simples, não é? Não nos chateemos com isso, que os tempos não estão para chatices. Vamos todos voltar, devagarinho, às nossas vidas. Todos, como convém.
DITO isto, claro que deve o futebol, como qualquer outra atividade, regressar com cautelas. Garantindo a segurança de todos os que são indispensáveis à realização de um jogo e, acima de tudo, àqueles de que o jogo depende de facto: os futebolistas. Como escreveu há uns dias o João Bonzinho, pode haver futebol sem público (mesmo que isso seja contra a sua essência), sem árbitros, sem apanha-bolas, sem treinadores, sem delegados da Liga, sem presidentes. Mas não pode haver futebol sem bola e sem jogadores. E eles são, mesmo que às vezes nos esqueçamos disso, humanos. Como nós. Têm filhos, têm pais, têm irmãos, têm avós. E não podem, naturalmente, estar preocupados com a possibilidade de serem transmissores do vírus àqueles de quem mais gostam. Será essa, essencialmente, a responsabilidade da equipa de especialistas que elaborará o plano que determinará em que moldes regressará o campeonato, garantir que tudo se processará dentro da maior segurança possível. Com o mínimo risco. Porque só assim valerá, de facto, a pena.