A «moda»

OPINIÃO10.12.202003:00

Foi por altura da publicação do livro Caim que José Saramago, no alto do seu ateísmo militante, admitiu estar «empapado em cristianismo», aludindo ao contexto social e cultural que envolve qualquer cidadão (português ou ibérico). Penso ser este um bom exemplo do peso que uma narrativa tem sobre o indivíduo, mesmo quando esse indivíduo defende precisamente o seu contrário. A força de um ideal é tão grande ou maior que as leis escritas porque quando partilhada pela maioria e sendo socialmente aceite atinge um grau de normalidade orgânica: fica nas entranhas e bem guardado no subconsciente.
É neste contexto que procuro entender a declaração infeliz de Jorge Jesus, na conferência de Imprensa de ontem, a propósito dos acontecimentos no Parque dos Príncipes na véspera. Quando diz que «hoje o tema racismo está na moda», estaria a referir-se a alguns exageros que têm sido cometidos (como o exemplo de punir Cavani por chamar negrito a um amigo numa rede social, sem procurar o contexto cultural e linguístico da América do Sul), mas não percebeu (ou ninguém o fez perceber ainda) que o mundo está a mudar. A posição assumida pelo treinador do Benfica não é a de um racista, longe disso, mas é a de quem ainda não entendeu o movimento da luta contra o racismo. Porque ainda está no inconsciente de todos nós considerarmos normal distinguir uma pessoa pela cor e não, por exemplo, pelo que veste - mas distinção essa sempre sobre o tom de pele escura e não o contrário. Demba Ba colocou a questão certa quando perguntou ao quarto árbitro se utilizaria o termo «branco» para identificar um determinado sujeito no banco de suplentes, mas foi pronto a usar o «negro» (aqui pouco importa se em romeno, como em português, é um termo mais suave que o ofensivo preto). Não respondeu, mas seguramente que a resposta seria óbvia: não, é claro que não.
O grande motivo de Jesus estar a ser muito criticado é o de ter revelado a incapacidade de entender que há uma nova narrativa em curso. Que as sociedades ocidentais estão num processo de reconciliação consigo próprias e a lutar contra muitos dos seus fantasmas, sendo o racismo um deles. Que cidadãos, desportistas ou artistas não toleram hoje comportamentos ou palavras ditas normais há cinco anos. E que esta é uma «moda» multicolor (recordemos a heterogeneidade racial nas manifestações após a morte de George Floyd), e, portanto transversal (ainda que mais vincada em populações mais jovens e urbanas).

É certo que os atos valem mais que as palavras (e que muitos defensores da igualdade racial incorrem muitas vezes na hipocrisia de virar o jogo ao contrário), mas o que Jesus não alcançou (ou permitiu que assim fosse interpretado) é que o discurso é hoje tão ou mais importante que os comportamentos. Sendo treinador de um grande clube português, as suas palavras ganham muito mais impacto e daí a importância de avaliar muito bem o que é dito e como é dito. Tivesse feito estas afirmações por causa dos tweets de Cavani ou de Bernardo Silva e provavelmente a reação da opinião pública seria outra, mas uma afirmação daquelas após um momento que ficará para a história da Liga dos Campeões expô-lo ao ridículo. E ao Benfica também. «Se se disser a mesma coisa contra um branco já não é sinal de racismo», justificou JJ. Tentei recordar-me de notícias ou documentários sobre o estigma contra brancos nas sociedades europeias e tive dificuldade em encontrar, mas ainda ontem ouvi o relato de um comentário dito numa aula de educação física, quando se visionavam vídeos sobre saltadores em comprimento: «Ena, tantos pretos.» Quem o disse foi um miúdo de 10 anos do 5.º ano. Se a luta contra a discriminação aumentar, talvez dentro de 20 anos essa criança poderá tornar-se um árbitro de futebol, num determinado jogo esquecer-se de fazer o trabalho de scouting para saber quem é quem no banco de suplentes e, aos 15 minutos, quando se dirigir ao chefe de equipa e pedir a punição para um determinado elemento e o árbitro lhe perguntar quem é, ignorar os níveis de melanina e simplesmente lhe dizer: «É aquele gajo ali à esquerda, de casaco verde.»