A mão de Deus, o cotovelo de Pote e outros incidentes
Parece que o Sporting também já mete golos ilegais. Uma série de comentadores e árbitros (incluindo aqueles que muito prezo) foram taxativos em afirmar que no golo do empate do Sporting frente ao Moreirense houve, ainda que inadvertidamente, um cotovelo de Pote. De modo nenhum quero colocar em causa a honorabilidade de quem o afirma, nem sequer a experiência que têm destas coisas, ou porventura a falta de vista. Mas acontece - e tenho de o dizer - que uma sportinguista de quatro costados, que administra ou gere um grupo fechado de sportinguistas no Facebook, do qual faço parte, fez um exercício interessante: colocou em câmara lenta o lance, para a frente e para trás (reverse) e eu não consigo ver cotovelo nenhum.
O que revela isto? Nada de especial! Na melhor hipótese há um relativismo filosófico, no que diz respeito a este lance específico: a forma como decorreu depende do ponto de vista do observador. Não que eu seja adepto deste tipo de relativismo, mas não consigo mesmo explicar como não vejo o que tanta gente viu. Porém, algo de bom, os analistas corretos não colocaram em causa a vitória do Sporting e menos ainda a categoria de Pote (Pedro Gonçalves), a melhor contratação desta época.
Poderei, até, acrescentar, que secretamente há uma coisa que me alegra: o Sporting começa a ser uma fonte de problemas para os seus adversários. Quem se importaria há uns tempos com um golo do Sporting? A questão andava entre o terceiro e o quarto lugar, entre ir diretamente para a Liga Europa ou fazer uma pré-eliminatória (que por acaso foi desastrada). Hoje - o que não significa que no fim da época seja igual, embora seja muito desejável que a situação se mantenha - a questão é liderar o campeonato, e com quantos pontos de avanço. Por isso, já se preocupam, e qualquer pormenor, a tangente que a bola eventualmente fará a um pelo do braço de um jogador do Sporting, servirá para muita discussão. A arbitragem será mais dura ainda, os outros clubes mais agressivos, os outros treinadores mais atentos a erros, falhas e défices da nossa equipa. Enfim, isto de ir à frente tem os seus custos, não só psicológicos, que esses Rúben Amorim e a equipa parecem saber lidar bem com eles, mas em todas as frentes.
Por isso espero que o Sporting consiga reforçar-se um pouco na próxima janela de transferências.
O ataque dos tubarões
Apropósito da janela de transferências que começará, em princípio, no mês que vem, já se vê muita gente, demasiada gente talvez, interessada nos jogadores de Alvalade. Nuno Mendes, menino-prodígio, é talvez o mais cobiçado, mas Pedro Gonçalves (Pote), Nuno Santos, João Palhinha e sabe-se lá quem mais, porque podem ser quase todos, hão de ter propostas melhores ou piores.
Felizmente, no sentido inverso tivemos João Mário, que prescindiu de outros para estar na sua casa. E bem nos faltava um jogador com a sua experiência, discernimento e talento. Felizmente ainda, Pote já disse que quer ficar a época toda. E eu gostaria que estes exemplos servissem para toda a equipa que alinha (quase todo o banco incluído) regularmente nos jogos. Claro que um bom matador à frente, pode levar a alguma boa venda; naturalmente, jovens que ainda não têm o seu lugar garantido, poderão ser emprestados, e tudo isto pode aliviar um pouco, ou mesmo bastante, os custos fixos (diz A BOLA de ontem que a administração Sporting quer pagar menos três milhões em salários). Mas, lá está o velho ditado: em equipa que ganha não se mexe. E o Sporting tem de confiar, depois de se ter despedido de Brunos Fernandes (era inevitável) e de outros jogadores que alegravam o nosso futebol (como Bas Dost) não pode passar a vida a vender, vender, vender.
Aliás, esta janela irrita-me particularmente. Porque é uma forma dos tubarões atacarem os peixinhos com boas performances. Um clube mostra que foi capaz de arranjar uma boa equipa, de potenciar alguns jogadores muito para lá do que era esperado; de repente, a meio da época, chega um tubarão com um orçamento que dá para três ou mais anos desse clube, e faz-lhe uma oferta milionária por um desses jogadores. Resultado, a época, em si, a competição que se estende ao longo de meses, fica desvirtuada. Não sei se acompanham este raciocínio, que me parece lógico, mesmo sabendo que o futebol se movimenta muito mais à volta do dinheiro do que da salutar competição.
No genial filme O Padrinho, de Francis Ford Coppola, o não menos genial Marlon Brando numa cena inesquecível, diz a um dos seus amigos: «Vou-lhe fazer uma oferta que ele não pode recusar.» Percebia-se a consequência da recusa. Ora, o futebol, não sendo todo, nem inteiramente isto, é muito isto. E é terrível!
Maradona e Lourenço
Para além da morte de muitos senhores do futebol, faleceu aquele que muita gente considerava um deus. Deixem-me estragar um pouco a festa. Diego Armando Maradona era um génio no jogo, um inacreditável futebolista que qualquer equipa gostaria de ter. Mas era, igualmente, um trafulha, um escroque que ninguém honrado gostaria de ter por parceiro. Uma sociedade que destrói carreiras (lembrem-se de Kevin Spacey, um enorme ator) por acusações não provadas de assédio sexual, não pode endeusar quem as fez; quem não reconheceu filhos, a não ser muito tarde (e não se sabe se todos); a quem maltratou mulheres; a quem era violento para com colegas de profissão; a quem admirou e conviveu com ditadores e elogiou o seu trabalho; a quem se ligou a traficantes de droga e se tornou, ele próprio, um consumidor compulsivo de drogas duras.
O desporto há de servir para mais do que o jogo. É, ou deveria ser, um exemplo para a juventude. Maradona foi tudo menos isso. E não me digam que foi por ter nascido num bairro muito pobre… temos exemplos, tantos, de outros jogadores quase ou tão geniais que souberam lidar com as suas carreiras e os seus problemas, mantendo sempre a decência. O facto de a Argentina ter feito dele um herói nacional tem a ver com a guerra das Malvinas a quem o resto do mundo é, no geral, alheio. O célebre golo da mão de Deus que hoje, em tempo de VAR, seria anulado, e o facto de Maradona nunca ter pedido desculpa pela forma batoteira como o obteve, também indica o estilo de pessoa. Claro que o golo seguinte é uma obra de arte. Mas por muito que alguns achem isto moralismo, reitero que a nenhum artista, ao mais genial, ao mais fora de série, pode ser tudo permitido. A ideia de que ninguém está acima da lei vale para todos. E vale para Maradona.
Antes de ontem faleceu um grande português. Esse, um exemplo de quase tudo - até pelo desprendimento com que viveu. Refiro-me a Eduardo Lourenço que numa entrevista concedida ao Público, em julho de 2017 disse a dado passo: «Hoje [dia 10 de Julho], parece que faz anos que os portugueses ganharam aos franceses, ainda por cima aos franceses. Foi muito interessante essa história. De facto é uma grande alegria, alegria máxima. O futebol não é só uma paixão portuguesa. É quase universal.» E mais à frente, noutra reflexão primorosa, disse: «Estragámos-lhes a festa. Mas as festas são para serem estragadas. Esperava que os comentários fossem mais inteligentes. Ainda bem que é o futebol, os jogos e a arte em geral que dilui a essência trágica do comportamento humano. Senão, estávamos em guerra permanente. O jogo é um exorcismo. Esgota-se - ou devia - na vitória e na derrota, aceites como tais, para que não se estrangulem no fim do jogo.» Sim, para o maior intelectual português dos nossos tempos, o futebol não era algo desprezível, como os pequenos e médios intelectuais gostam de afirmar. Quantos ouvimos orgulhar-se de não saberem nada de bola nem quererem saber, mostrando-se superiores a nós, pobres terrenos, que se interessam por essa coisa. Para Eduardo Lourenço, o futebol é uma arte, talvez menor, concede, mas grandiosa neste aspeto: «Tem efeitos de representação do que são os nossos sonhos, as nossas ambições, a nossa imagem de vencedores. Os homens querem ter sempre uma imagem positiva, mas sobretudo vitoriosa, de si mesmos.»
Permitam-me, pois, que contraponha a arte de Maradona com a desgraça de vida que levou, a qual não merece qualquer elogio, com o pensamento e arte de Eduardo Lourenço, e o modo sublime como ele olha o futebol. Prefiro mil vezes o segundo.