A importância de ser o primeiro
ESTÁVAMOS a falar de quê, recorda-se, excelência?
- Não.
- Era de uma viagem qualquer, mas agora assim, de repente…
- Uma viagem?
- Era da ida do homem à lua, não era?
- Já foi?
- Já foi sim, e já veio.
- Quem?
- O homem no geral.
- Oh, diabo. Isso é montes de gente.
- Não foi tanta gente assim. Foram três. E já foi há muito tempo.
- Três?
- Três sujeitos.
- E como foram três sujeitos à lua considera-se que o homem, no seu todo, a humanidade, já foi à lua, é isso?
- Sim.
- Não é um exagero?
- Talvez, excelência.
- Vossa excelência já foi a Singapura? Perdoe-me a pergunta.
- Eu. Não?
- Pois, eu já fui, excelência. Isso não me autoriza a dizer que vossa excelência, e a sua família, ou o homem no geral, já foi a Singapura. Não lhe parece?
- Pois tem razão. Mas é assim que eu ouço: o homem já foi à lua. Está a dar em todas as notícias.
- Pois sim, mas eu ainda não fui. Estou aqui com os pés bem no chão, pesados e… népias. Da lua só conheço as vistas de baixo.
- O homem foi à lua, mas vossa excelência e eu não. Ou não somos humanos ou alguém nos anda a enganar, é isso?
- Sim, temos de ser precisos. Não foi uma multidão à lua. Era muito caro.
- Foram três homens. Em particular um, eu diria, excelência.
- Um apenas? Não eram três?
- Um. Os outros chegaram depois.
- Três.
- Neil Armstrong e outros dois sujeitos que tiveram o azar de não serem como o Neil Armstrong.
- O primeiro?
- O primeiro.
- O primeiro a pisar a lua.
- Até em viagens espaciais, chegar em primeiro tem uma importância decisiva.
- É isso.
- Pois.
- Repare, excelência, que estamos a falar de uma ida à lua. É longe.
- À lua?
- Sim, à lua, bem lá ao fundo.
- Para cima.
- Bem lá para cima. Mais para cima do que isto tudo.
- Para cima e para o fundo, é onde está a lua, parece-me.
- Sim, exactamente aí. Longe como o raio, mais exactamente.
- Medidas exactas. Para quê fita métrica?! É longe como o raio.
- Vossa excelência usa essa expressão e eu fico com a ideia exacta da distância.
- Longe como o raio, a lua!
- Que pode a ciência da fita métrica contra o poder da linguagem popular?
- Mas dizia vossa excelência…
- Dizia que foram três astronautas à lua. Longíssima e difícil viagem. Entre milhões e milhões de seres humanos, temos três que foram nessa primeira viagem histórica.
- Apenas três.
- Viagem histórica e perigosa.
- Sim.
- Enquanto milhões de humanos ficaram aqui na terra, a saborear o facto de estarem com os pés bem em cima do solo.
- Cheios de sorte por terem peso.
- Cheiinhos de lei de gravidade por todos os lados. Sem qualquer risco de desapareceram pelo ar fora como um balão.
- Sim. E? Vossa Excelência quer chegar onde?
- Só três de entre milhões e milhões de humanos foram à lua pela primeira vez. E que nome conhece vossa excelência, vossa excelência que é uma pessoa mais ou menos informada, que nome conhece de entre esses três?
- Um nome.
- Sim, um nome, o primeiro que pisou a lua. Neil Armstrong.
- Neil Armstrong.
- Sabe quem foi o segundo?
- Não faço ideia. Que interessa isso?
- Pois. Veja. Que triste sociedade esta, excelência.
- Porquê?
- Só nos lembramos de quem chega em primeiro.
- Nos 100 metros é o Bolt, não é?
- Sim. E os nomes dos outros?
- Só sei que os outros não se chamam Bolt.
- Ou seja, sabemos o nome do primeiro e depois sabemos que todos os outros são outras pessoas que não o primeiro. É isso?
- Sim, só sei que os outros astronautas não são o Neil Armstrong.
- Exatamente isso. Vossa excelência foi claríssimo.
- Clareza de raciocínio.
- Por vezes sabe-se o nome dos primeiros e dos últimos. Os que estão no meio, népia.
- Nada.
- Ficar no meio…
… e em 2º é já no meio…
- Sim, exactamente excelência. Mas dizia: ficar no meio é quase uma catástrofe.
- Ficar no meio é a forma de ficar invisível.
- Pois é.
- Quem foi o segundo humano a subir aos Himalaias?
- Outra pergunta difícil.
- Decidi, portanto, neste momento, excelência, neste exacto momento, fazer o seguinte. Uma tarefa a sério. Uma tarefa revolucionária.
- Diga.
- Vou fazer uma lista de todos os sujeitos que ficaram em segundo em todas as actividades humanas. Que lhe parece?
- Um modo de relembrar os esquecidos. Bravo, excelência!
- Sim, um gesto de compaixão.
- Que belo gesto o seu, excelência, que belo gesto!
- Será que fui o primeiro a ter esta ideia?
- Esperemos que sim, excelência, esperemos que sim… Como é mesmo o seu nome?