A história do Mundial e a histeria nacional!...
No Mundial do Catar, não vi nenhuma equipa que me deslumbrasse, inclusivamente a nossa, talvez por estar distraída com outros temas
A história, genericamente, é uma narração escrita de factos notáveis e importantes ocorridos na sociedade em geral ou numa, em particular, ou de um evento de grande repercussão, como é o caso do Mundial de Futebol, realizado neste final de ano de 2022, no Catar.
A história do campeonato começa com a atribuição da sua organização ao Catar, acto que, quer se queira, quer não, ficará para sempre ligado ao fenómeno da corrupção, um flagelo, como a competição, de dimensão mundial. As organizações internacionais ligadas ao futebol da fama não se livrarão. E do proveito, se calhar, também não.
Ligada à história do mundial do Catar, designadamente à construção dos sumptuosos estádios de futebol, ficará também a questão da violação dos direitos humanos e a hipocrisia generalizada dos políticos, a lembrar a velha informação televisiva «pedimos desculpa pela interrupção, o programa segue dentro de momentos!...».
Na verdade, o futebol, um desporto de paixões e multidões, serve aos políticos para muitas coisas, incluindo para justificarem e branquearem todo o tipo de situações e para nos desviarem do que é realmente importante na nossa vida. Futebol, Fátima e fado eram as divisas do Portugal sob o regime salazarista. Os outros tinham outros santuários e outras músicas, mas o futebol mantém-se como o ponto em comum. Esquece-se quase tudo durante a organização destas competições e é isso que os governos querem: durante um mês que se lixem o ambiente, a inflacção, a guerra, os direitos humanos, a violência doméstica e até as divisões. Esquece-se tudo: indivíduos de direita ou de esquerda, de todos os clubes e religiões, uns patriotas, outros antipatriotas, das mesmas ou de diferentes nacionalidades de origem, com as mãos nos peitos e os olhos comovidos, cantam os hinos nacionais, perante milhões e milhões de telespectadores. Ninguém se lembra dos compatriotas com fome!...
O Mundial do Catar ficará também na história, mesmo que o tempo se repita, por se ter disputado a meio da época desportiva na Europa, mas no fim da temporada, noutros continentes. De qualquer forma, para a maioria dos grandes jogadores que integram as selecções de cada país, que, na sua esmagadora maioria, jogam nos grandes campeonatos europeus, o campeonato disputou-se a meio da época (mais ao princípio do que a meio...) e ainda não se pronunciaram sobre essa diferença, e eles e os treinadores serão aqueles que melhor poderão esclarecer-nos. Na minha mais que modesta opinião, não me pare- ce que a qualidade tenha aumentado. Bem pelo contrário: no Catar, não vi nenhuma selecção que me deslumbrasse, inclusivamente a nossa, distraída com outros temas.
A história deste Mundial, porém, do ponto de vista desportivo, termina apenas amanhã, seguindo-se as análises dos técnicos, dos jogadores e dos outros intervenientes na prova, entre os quais os figurantes, com muitos a passarem de personagens menores nos filmes a protagonistas importantes nas televisões.
A história da participação portuguesa no mundial começou muito antes do campeonato e vai acabar muito depois, justamente porque para os nossos grandes artistas do palco verde do futebol e os grandes comentadores e jornalistas deste país há muito que se apagaram os holofotes, trazendo à boca de cena os figurantes que mais mal fazem ao futebol e estão a transformar o espectáculo desportivo mais belo do mundo numa novela ridícula (por vezes, muito nojenta). A má língua sobrepõe-se à crítica e a desonestidade intelectual (e não só) esmaga quem se propõe tratar os assuntos de uma forma séria. Não tenho saudades de um Portugal amordaçado, mas alguns estão a necessitar de açaimo...
A história da nossa participação começou com um roubo de arbitragem no Sérvia-Portugal e acabou por ter como grande protagonista aquele que viria a ser, quer queiram, quer não, a figura principal do Mundial do Catar: Cristiano Ronaldo e a sua marca CR7, que, depois de rebentar com as grades do provincianismo, conseguiram concentrar sobre si a atenção toda a atenção das máquinas fotográficas e câmaras de televisão, de todo o mundo. Enquanto isto, a comunicação social mais mesquinha encorajou Fernando Santos a colocá-lo no lugar em vez de colocá-lo a jogar. Tiveram a resposta!
CR7, no Catar, sempre sob os holofotes
Voltando ao Sérvia-Portugal do nosso descontentamento, ao golo limpo não validado deu-se pouca importância, relevando antes, vezes sem conta, da frente para trás e de trás para a frente, a imagem do Cristiano Ronaldo a atirar, revoltado, a braçadeira de capitão para o chão. Foi a revolta do inconformismo perante o conformismo e a impotência da FPF, mas não foi sob este ângulo que o viram. Foi aí que começou a senda de destruição da sua imagem. São as virgens ofendidas, que sempre se comportam bem!...
Depois veio o Portugal-Sérvia que nos levou ao play-off com a Turquia e, depois, com a Macedónia de Norte, que nos livrou de defrontarmos a Itália. Se alguma histeria já vinha do Sérvia-Portugal, a mesma avolumou-se com o Portugal-Sérvia, do não apuramento directo para o Mundial. Mudou só a vítima: de Cristiano Ronaldo passou-se para Fernando Santos, de quem começaram a exigir a demissão, pelo seu conservadorismo e teimosia defensiva, quando o talento dos nossos jogadores merecia melhor orientação. Mesmo depois de apurados para a fase final de outro Campeonato do Mundo, muitos defenderam a escolha de outro treinador para o Catar.
Depois veio a questão fiscal e a natureza da relação contratual entre a Federação Portuguesa de Futebol, que teima, nesta vertente, em não se assumir como uma instituição de utilidade pública. Alguns jornalistas e comentadores trataram do tema de forma séria, mas a histeria nacional, mais uma vez, foi alimentada por intervenções sucessivas de indivíduos que, se calhar, fogem ao fisco todos os dias. O que os atormenta, na verdade, é o montante em causa.
Depois, veio para a ribalta, ao fim e ao cabo, quem nela sempre andou, e andará ainda por muito tempo, Cristiano Ronaldo, que passou por situações e circunstâncias que ninguém deseja, e exigem tratamento com muito mais respeito. A mediocridade de carácter tem destas coisas, como pensar que alguém, só por ter muito dinheiro, é uma máquina e não um ser humano. Esta é a ditosa pátria, minha amada, como diria Camões!...
Depois veio a entrevista de Cristiano Ronaldo para se soltar do pesadelo Manchester United, que teve sucesso, aliás, mas deu origem a horas e horas de discussão, não de debate, sobre a influência dela no jogador e nos demais elementos da selecção nacional, com afirmações e análises ridículas, algumas nem contra nem a favor, umas apenas para o depreciar, outras só para o elogiar, talvez por algum tipo de temor reverencial, porque algo lhe mendigam. Assisti a tudo isto, entre a raiva e a tristeza perante tanta pobreza mental. Não quero que se omitam acontecimentos, façamos de conta que nada aconteceu, ou branqueemos quaisquer comportamentos, mas devemos respeitar os momentos em que devemos procurar unidade - o que não significa unanimidade - e não divisões estéreis e histéricas que a nada nos conduzem, nem constituem crítica construtiva. Esta tem a sua oportunidade, a posteriori. Antes, tem efeitos destruidores. Se a desvalorizassem, em termos do jogador e da restante selecção, talvez não tivesse qualquer influência, independentemente do impacto. Mas não: o foco de certa co- municação social é a fofoquice pura e dura, porque essa é que rende, e não a que tem objectivos de informar e esclarecer.
Depois veio a cena do jogo com a Coreia do Sul, que tornou Fernando Santos num homem corajoso, em vez de um medroso, enquanto Cristiano Ronaldo passou a criminoso pela linguagem feia, porque a maioria dos jogadores de futebol, quando são substituídos, viram-se para os seus treinadores e dizem: «V. Exa está com uma pressa em me substituir, que não me é dado compreender, mas que certamente me explicará!». Seguiu-se a vitória sobre a Suíça e Fernando Santos, além da coragem de colocar Cristiano Ronaldo a suplente, passou a ser o treinador que nos levaria a campeões mundiais. Gonçalo Ramos, com os três golos, tornou-se o maior e CR7 passou a dispensável. A histeria nacional...
E, após o jogo, o que é que se discutiu? O facto de Cristiano Ronaldo não ter comemorado os golos com os outros jogadores, perante os adeptos. Além de ser falso, facto que não admira, devido à perversidade de muitas mentes, não tem importância nenhuma e até é comum quando não se tem qualquer influência no resultado. De resto, CR7 festejou todos os golos, até agradeceu aos adeptos no fim do jogo e ainda incitou os colegas de equipa a fazê-lo. No entanto, falou-se apenas que deixou o relvado mais cedo...
Mas da histeria da conversa sobre Cristiano Ronaldo passou-se a outra histeria, agora sobre o sucesso do jogador que o substituiu, que logo começaram a deitar abaixo, socorrendo de um vídeo a correr na Internet. Naturalmente, este episódio afectou um Gonçalo Ramos muito motivado. De uma assentada, dois valores importantes da nossa selecção foram atacados pelo histerismo de alguma comunicação social. O que me indigna mais é que, ainda por cima, certos comentadores e jornalistas complexados e medíocres se apresentam como moralistas encartados e falam tanto da canalhice de quem publica este tipo de coisas na Internet e sobre isso falam durante horas, dando-lhe a maior publicidade possível, para despertar a curiosidade mórbida do público. Será isto um bom serviço da comunicação social? Não! É lixo.
A derrota com Marrocos era inevitável, porque as pessoas, orientadas ou manipuladas por este tipo de comunicação, estavam desviadas do foco. Valorizámos aquilo que não devíamos e desvalorizámos Marrocos. Da história deste Mundial no Catar fará parte, também, a eliminação de Portugal. Fica a vitória da histeria sobre o talento natural de uma geração de grandes futebolistas!...