A cor azul e o lápis azul

OPINIÃO06.03.202305:30

Dúvida existencial: podemos dizer que um ‘queixinhas’ é parvo ou que é apenas alegadamente parvo?

O segredo de justiça é um pau de dois bicos. Se é quebrado e coloca em causa os nossos ou quem está a nosso lado, a quebra é inconstitucional, porque não protege o bom nome daqueles que gozam da presunção de inocência até prova em contrário. Faz sentido. Se alguém escreve a informar que vai deixar de ler o jornal A, B ou C (mera tese académica) porque acha que o que lê não é o que gostaria de ler, não é necessariamente parvo. É apenas, alegadamente, parvo. Terá de provar-se a parvoíce. E o que é parvoíce para um pode não ser para outro. Há uns largos anos, por exemplo, um amigo meu, o Miguel, escreveu uma carta ao CEO das Pastilhas Pirata.

Mastigava aquelas pastilhas há 50 anos e durante 27 ajudou a embrulhá-las - num e noutro caso sem falhas. Gostava de as mastigar e também de as embrulhar. Até que, um dia, salvo erro durante a pandemia, deixou de se mostrar disponível para continuar a embrulhá-las. Só as comia. Porém, há uns meses, sem lhe perguntarem, alteraram as resinas e as parafinas das Pastilhas Pirata, passando a integrar ainda mais polímeros sintéticos. Ele sabia bem que metade ou dois terços dos fãs das Pastilhas Pirata gostam de polímeros sintéticos e que, por isso, era preciso privilegiar esse sabor. Mas isso não implicava que os polímeros sintéticos dispensassem as regras de sabor, cor e elasticidade das Pastilhas Piratas. Para ele, disse-me o Miguel, a gota de água foi quando, um dia, comprou Pastilhas Pirata e as pastilhas eram infinitamente piores daquilo que tinham sido no passado. Por ele, concluiu na carta enviada ao CEO das Pastilhas Piratas, adeus e boa sorte. Assim, há duas semanas que a pergunta me continua a atrofiar:  o Miguel é parvo ou apenas, alegadamente, parvo?

HÁ outro bico do pau do segredo de justiça. Aquele que, se quebrado, coloca em causa apenas os outros: os maus. Aí, meus caros, a quebra do segredo é completamente constitucional, porque, apesar de não proteger o bom nome dos que gozam da presunção de inocência, ataca os maus: os outros. Aí, vale tudo. Se a cor dos nossos olhos é azul, a quebra do segredo de justiça é inconstitucional quando falamos do Apito Dourado. Ao invés, se os nossos olhos são verdes ou vermelhos, tudo é constitucional e o segredo pode ser divulgado por um qualquer blow whistler. Passa-se o mesmo com o E-Toupeira, o Cashball, o Mala Ciao ou o Saco Azul. Ser ou não ser blow whistler, haver ou não quebra do segredo de justiça, depende da cor dos nossos olhos. Gosto de arco-íris.

DA cor dos nossos olhos não depende, a meu ver, a queixa da APAF sobre as declarações de Sérgio Conceição após a derrota, no Dragão, com o Gil Vicente. «Acho muito bem que o árbitro seja chamado ao VAR porque eles estão lá exatamente para isso. É uma ferramenta importante para o futebol. Agora, tem de ser em todas as situações e não só em algumas», disse o treinador do FC Porto. E houve queixa da APAF. Disse algo que não devia? Não. Disse algo que, em zonas não censuráveis da sociedade, é perfeitamente aceitável. SC já afirmou coisas de elevada gravidade, já o disse em tom excessivamente agressivo, mas querer puni-lo por ter dito que o VAR tem de o ser em todas as situações e não só em algumas, parece-me, sim, estar besuntado pela cor azul: o azul da censura.