206 carateres e 286 euros

OPINIÃO12.05.202206:55

A normalização da violência está a crescer de uma forma galopante e os clubes não estão a contribuir para travar esta espiral

A LGO vai mal quando um adepto morre durante os festejos no Dragão pela conquista do título de campeão por parte do FC Porto e a única posição oficial do clube sobre a tragédia é um comunicado de duas linhas, de 206 carateres (sem espaços), publicado dois dias depois do evento. Algo vai mal quando, perante a perda de uma vida humana, o clube gere publicamente o tema com a importância de uma  newsletter a criticar o último fora de jogo mal marcado. Algo vai mal quando Pinto da Costa, figura máxima do FC Porto, ainda não disse uma palavra sobre o assunto. Algo vai mal quando muitos consideram este silêncio normal. Algo vai mal quando muitos acham, até, que é melhor assim, porque o sangue jorraria de qualquer forma noutro local, noutro contexto, noutro dia.

Que o FC Porto não tem qualquer responsabilidade sobre o que aconteceu é óbvio e associar este fenómeno aos azuis e brancos é apenas a irracionalidade e a clubite a falar. Todos têm um histórico e o diabo aparece em todas as esquinas. Que Pinto da Costa estará, até, atrevo-me a dizê-lo, a fazer os possíveis para mitigar a dor da família da vítima, também não terei grandes dúvidas. Mas precisava de ter vindo a público. Perante um momento trágico que assombrou a bela festa pelo 30.º título, o mais alto representante dos azuis e brancos optou por nada dizer. É uma pena. Porque as palavras que não são ditas acabam por contribuir (mesmo que não seja esse o seu objetivo) para a normalização da violência.  Quando ocorre a perda de uma vida humana pouco importa se é homem ou mulher, se é branco, preto ou amarelo, se veste de azul, vermelho ou verde, se tem ou não cadastro, se pertence ou não a uma claque. Esta é uma daquelas linhas vermelhas que quando ultrapassadas devem obrigar o Estado a pensar, repensar e agir. Porque, lamentavelmente, os clubes pouco fazem para combater as águas agitadas que há muito galgaram as margens da decência. Todos nos recordamos, por exemplo, do que disse Luís Filipe Vieira, à data presidente do Benfica, sobre a morte de um adepto do Sporting e da Fiorentina nas horas que antecederam um dérbi, em 2017: «Agora pergunto: sendo adeptos do Sporting, o que estavam a fazer na Luz às três da manhã? Não seria certamente para tirar fotos ao Cosme Damião ou ao Eusébio. Sabemos que provocação gera violência e sabemos quem tem contribuído para isso.» As palavras tinham como destino o presidente do rival, expert em terrorismo comunicacional entretanto extinto. Quando deveria ser a prioridade número um, a perda de uma vida humana ficou fora de jogo.

Menos grave, apenas e só porque foram palavras (mas que ferem o coração das pessoas dignas como facas afiadas), foram os cânticos deploráveis de alguns adeptos do Boavista dirigidos a Rochinha, exultando a morte da mãe do jogador do V. Guimarães. Algo vai mal quando tal acontece pela terceira vez (porque na primeira e na segunda não doeu nos prevaricadores). Algo vai mal quando é aplicada uma multa de 286 euros pelo sucedido. Algo vai mal quando é necessária a instauração de um  processo disciplinar a posteriori que depois terá os seus complexos e demorados trâmites que perdurarão no tempo (lembram-se do caso Marega?). Algo vai mal quando o Boavista não se pronuncia; ou quando o Rio Ave também sacode a água do capote depois dos (audíveis) insultos racistas dirigidos a Sandro Cruz, do Benfica B. Algo vai mal quando o futebol português continua a viver na Idade Média e os dirigentes dos clubes parecem sequestrados pelos adeptos radicais e fortemente condicionados pelo tribalismo. A este propósito nunca me canso de dar o exemplo do atual presidente da Juventus, Andrea Agnelli, que não teve receio de criticar a claque radical bianconera sobre os cartazes e cânticos que celebravam a tragédia de Superga, durante um dérbi com o Torino, em 2014. «Não se toca nas tragédias, nunca! Não aos cartazes e cânticos canalhas», escreveu à data, no Twitter. Fê-lo da sua lavra, sem precisar de um diretor de comunicação ou de uma newsletter. Há coisas tão elementares que não precisam de intermediação, apenas bom senso e noção dos princípios mais básicos de uma sociedade livre e moderna. A necessidade de recordá-lo é um péssimo sinal.