Mais Coerência, Mais Coerência, Mais Coerência (artigo de Gustavo Pires, 109)

Espaço Universidade Mais Coerência, Mais Coerência, Mais Coerência (artigo de Gustavo Pires, 109)

ESPAÇO UNIVERSIDADE26.01.202022:24

Entendeu JM Constantino na qualidade de presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) expressar os seus mais pungentes lamentos relativamente à trágica morte do motociclista Paulo Gonçalves. Ao fazê-lo expressou, certamente, os sentimentos de muitos portugueses nos quais me incluo. Muito embora a morte seja um risco sempre presente na prática desportiva, todavia, todos nós que amamos o desporto, recusamo-nos a aceitá-la.

Mas o que mais comungo da referida prosa do presidente do COP é o facto de ele manifestar a  sua, digamos, perplexidade relativamente a uma das maiores injustiças que tem sido cometida a muitos atletas que, depois de terem conseguido os mais extraordinários feitos, acabam por cair no esquecimento quando não na miséria. Disse JM Constantino: “… parece existir nas sociedades actuais uma espécie de pudor em exaltar em vida o que se celebra na morte”. (Cf. Público, 2020-01-21)

Com a devida vénia faço minhas as palavras do presidente do COP. De facto, há muita gente a ser agraciada em vida com Honoris Causa e Ordens do Infante sem que alguma vez tenha feito outra coisa na vida senão, sem correr o mínimo risco, trepar por um lugar ao sol. E coitados daqueles que se atrevam a dizer que “o rei vai nu”.

Por isso estou com JM Constantino. E até fui pesquisar à net a fim de apurar o currículo desportivo de Paulo Gonçalves. Na realidade, o que encontrei foi um currículo extraordinário de entrega a uma modalidade que serviu com todo o empenho, alegria e dignidade. Por isso, não se compreende que Paulo Gonçalves, apesar dos seus extraordinários feitos desportivos, tenha sido deixado no rol dos esquecidos e ostracizados quando, ao longo da sua carreira desportiva, não faltaram oportunidades para que as nomenclaturas desportivas, públicas e privadas, por iniciativa e competências próprias ou por proposta a quem de direito atribuíssem ou sugerissem uma justa condecoração ao motociclista. Então, não estaríamos, como o presidente do COP tão oportunamente o faz, a lamentarmo-nos porque um grande atleta teve infelicidade de morrer sem nunca ter sido devidamente agraciado pelas autoridades públicas ou privadas que superintendem o desporto no País.

Na realidade, têm sido muitos os atletas de alto gabarito que passaram pelo desporto sem nunca terem sidos reconhecidos. Felizmente, o Presidente da República, perante o desinteresse tanto das autoridades públicas como das privadas com competências executivas, resolveu tomar sob a sua responsabilidade o reconhecimento dos portugueses para com os atletas que em provas internacionais honraram o nome de Portugal. Mais vale tarde do que nunca e, tal qual Prometeu, Marcelo Rebelo de Sousa resolveu roubar o fogo que era propriedade dos deuses do Olimpo a fim de o oferecer aos Homens. Ao fazê-lo, inaugurou um novo tempo que, ao contrário do passado em que o foco das honrarias estava nos dirigentes, fez incidi-lo sobre os atletas. E, assim, o País assistiu à condecoração de atletas como Fernando Pimenta, Patrícia Mamona, Sara Moreira, Jéssica Augusto, Ana Dulce Félix, Marisa Barros, Vanessa Fernandes, Tsanko Arnaudov e Jorge Fonseca. Para além disso, abriu um espaço de comunicação na Presidência da República onde antigos e atuais atletas tiveram a oportunidade de partilhar os seus conhecimentos e experiências com jovens dos ensinos básicos e secundário e, através dos media que aderiram com interesse, com o País. E, assim, o Presidente Marcelo com as suas condecorações, antecipou-se à constatação que JM Constantino no artigo que publicou no jornal Público: “… parece existir nas sociedades actuais uma espécie de pudor em exaltar em vida o que se celebra na morte”.

Na realidade, a problemática do pudor em exaltar em vida o que se celebra na morte que caracteriza a cultura das sociedades actuais já havia sido equacionada pelo presidente do COP quando, num artigo no digital Observador (Cf. 2018-09-06), entendeu comentar as condecorações atribuídas por Marcelo aos já referidos atletas que haviam conseguido resultados de alto significado em eventos de nível internacional. Disse JM Constantino: “… como em tudo na vida, o excesso ou uma opção não baseada em critérios de valor desportivo corre o risco de banalizar o que deveria ser considerado um registo de excelência”. E, numa entrevista (Cf. Record, 2019-07-21) afirmou: “O Presidente sabe o que penso das condecorações”. E esclareceu: “o Comité Olímpico enviou pelos meios institucionais o seu entendimento sobre essa matéria. Que era necessário perceber-se o critério porque é que em certas circunstâncias o senhor Presidente da República convida e condecora, noutras só convida, noutras não convida nem condecora”. E, ainda, informou sobre “o desconforto que os meios desportivos têm relativamente a esta matéria”, sem ter, concretamente, identificado as várias entidades desconfortadas.

Todavia, relativamente ao seu critério há muito que o Presidente da República havia dito que está "definido o critério, que é um critério igualitário, e que deve ir a todas as modalidades desportivas e a todos os setores da vida nacional". (Cf. Correio da Manhã, 2016-07-14). Na realidade, Marcelo Rebelo de Sousa, de acordo com a sua competência constitucional, para além das burocracias político-administrativas, entendeu dever atribuir condecorações a portugueses que conquistaram resultados de pódio em competições internacionais nos mais diversos desportos. Ao fazê-lo, reconhece-os e honra-os. Aproxima o desporto da sociedade e atribuiu-lhe a importância que merece. E, na consciência do seu livre-arbítrio, toma as decisões à margem das preocupações, opiniões ou interesses, dos institucionais orgânicos que chefiam o sistema burocrático, público e privado, do desporto nacional. E, ainda bem. Nas atuais circunstâncias de concentração excessiva de poder burocrático, o livre arbítrio do Presidente da República, no caso em análise, veio atribuir algum equilíbrio a um sistema em profundo desequilíbrio.

A atribuição de condecorações desportivas, muitas ou poucas, deve ser processada de acordo com o modelo de desenvolvimento do desporto que se pretende para o País. E o modelo de desenvolvimento do desporto que se pretende para o país depende da sociedade em que se deseja viver, quer dizer, ou numa democracia popular de economia de Estado ou numa democracia liberal de economia de mercado. Porque, uma coisa é viver-se num país como a Coreia do Norte onde o desporto, para além dos festivais de performances coreográficas de massas em honra dos queridos líderes, acaba nas sete medalhas conquistadas nos Jogos Olímpicos do Rio (2016) pelo que os atletas são instituídos em heróis desportivos ao serviço do regime e outra coisa, completamente diferente, é vivermos num país como a Finlândia que ganhou uma única medalha nos Jogos Olímpicos do Rio (2016) mas onde o desporto, na mais plena liberdade, é das atividades mais importantes das crianças e, de uma maneira geral, 90% da população pratica desporto pelo menos duas vezes por semana e 50% mais de quatro vezes e os atletas devidamente reconhecidos pela sociedade em geral, para além dos instintos de oportunismo burocrático-institucionais, são, tão só, importantes promotores da prática desportiva entre a juventude.

Nos regimes autoritários de esquerda e de direita, a nomenclatura politico-desportiva, de acordo com a orientação do partido único, estabelece “cientificamente” o critério que determina o atleta que deve ser condecorado. E este, passa a ser, perante o povo que o ignora, o “herói” representante da oligarquia que o povo despreza. Nestas circunstâncias, não existe nada mais útil do que um critério que será sempre elaborado de acordo com os interesses de quem o concebeu. Tal como acontecida na antiga URSS com a Ordem Lenine, em Cuba com a Ordem José Martí ou na generalidade das democracias populares onde o desporto era um dos instrumentos mais eficazes ao serviço do aparelho repressivo do Estado.

Nos regimes liberais democráticos, as condecorações, de acordo com a respetiva finalidade, são atribuídas ou por propostas de terceiras entidades que podem ou não ser aceite ou, por iniciativa própria de entidades com competência democrática para tal. A decisão final depende, exclusivamente, do livre arbítrio de consciência do decisor político que deve partir de um “véu de ignorância” que, na perspetiva de Rawls, pode ser traduzida numa espécie de “firewall” contra o uso de interesses particulares sempre desejosos de capturarem o desporto.

De acordo com as suas convicções ideológicas e estilo de magistratura, o Presidente da República só podia escolher o segundo modelo. Em conformidade, dispensou os solícitos institucionais orgânicos intermediários, passou a relacionar-se diretamente com os desportistas e, para além da oligarquia, abriu o desporto à sociedade. Porque, quando se vive numa sociedade cujos valores fundamentais de liberdade assentam no controlo consciente das pessoas sobre as suas ações, a última coisa que se necessita é  da existência de institucionais orgânicos a controlarem as condições em que os órgãos de soberania devem exercer as suas responsabilidades constitucionais.

Nesta perspetiva, o Presidente da República ultrapassou a visão burocrático-ornamental de configuração totalitária de características oligárquicas que tomou conta do desporto. Ao fazê-lo: (1º) passou a  atribuir a devida importância aos atletas que, sem mais-valias políticas, acabam esquecidos; (2º) considera, na justa medida, o trabalho dos técnicos tantas vezes ignorados; (3º) respeita o esforço dos dirigentes dos Clubes e Federações que, bastas vezes, são mal agraciados; (4º) valoriza a dedicação e o esforço das famílias e; (5º) enaltece o desporto perante o País que, pacientemente, aguarda que os dirigentes políticos e desportivos do vértice estratégico, finalmente, para além das alienantes parangonas da comunicação social politicamente comprometida, o coloquem ao serviço dos portugueses e do País.

Só assim um nome como o de Paulo Gonçalves nunca teria sio esquecido na medida em que a responsabilidade de que o seu nome fosse devidamente reconhecido seria da competência dos dirigentes do próprio Sistema Desportivo que, em tempo útil, deviam ter feito chegar as devidas propostas aos órgãos que tutelam o desporto nacional bem como à própria Presidência da República.

Pelo discurso do presidente do COP presumo que a instituição, em devido tempo, fez chegar o nome de Paulo Gonçalves à tutela político-administrativa bem como à Presidência da República porque, só assim, se pode compreender a opinião de JM Constantino quando escreve: “… parece existir nas sociedades actuais uma espécie de pudor em exaltar em vida o que se celebra na morte”.

E assim é porque não se trata de saber se Marcelo Rebelo de Sousa condecora muito ou pouco, trata-se é de saber se condecora todos aqueles que merecem ser condecorados. Não se trata de saber qual é o critério do Presidente da República trata-se é de saber se os diversos órgãos públicos e privados que tutelam o desporto fizeram chegar os nomes com as respetivas propostas à Presidência da República.

Gustavo Pires é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana