Shéu em grande entrevista: a mística do Benfica, quem mais o marcou e uma deliciosa história de Eusébio

FUTEBOL26.03.202409:00

Shéu Han, 19 anos futebolista do Benfica e quase 30 como secretário-técnico, em grande entrevista no programa «Conselho de Estádio»

Vítor Serpa (VS) — Tem saudades da convivência no balneário?

SHÉU HAN — Foram muitos anos, e nas mais diversas formas, quer como jogador, treinador, ou dirigente, sempre com uma proximidade muito grande, o que inevitavelmente deixa muita saudade… por falar em saudade, gostava de evocar quatro colegas fantásticos, desaparecidos nos últimos tempos, Rui Rodrigues, Artur Jorge, Pietra e Pacheco, que vi partir com muita pena…

José Manuel Delgado (JMD) — Neste último meio século, a sua ligação a esta casa, A BOLA, de que está a conhecer as novas instalações, também foi forte…

— Tenho o sentimento de um percurso paralelo. Lembro-me de que quando eu cheguei, em 1970, o único jornalista que estava no aeroporto era Cruz dos Santos…

JMD — O mesmo que precisamente dez anos antes também era o único presente na Portela quando chegou a Lisboa Eusébio da Silva Ferreira…

— É uma ligação que existe, e eu gosto de muito de agarrar o passado para projetar o futuro. Sempre foi a minha vitória em relação à vida, respeitar o passado, que é o que nos faz sentir as raízes.

VS — Regressando à sua passagem pelo Benfica…

— É uma questão muito densa, não é? Preparei-me bastante nas várias etapas onde estive envolvido, como jogador durante 19 anos, e depois mais quase 30 como secretário técnico. E em todas elas tive a oportunidade e a sorte de poder dimensionar a minha participação. Isto para dizer o quê? Para dizer que nestes dois projetos tive a oportunidade de decidir que aquele era o meu tempo, e também de intuir que o tempo terminara e devia ir para outro patamar. Mas, ao fim de todos estes anos, criei um código, que pode ser traduzido por um abraço, que me faz estar sempre lá. E esse estado de alma é imutável, e até ao dia de hoje, quando são criticados, mesmo que isso me coloque em contraciclo, estou sempre com eles.

VS — É factual que teve uma ligação de 50 anos ao Benfica, mas as coisas mudaram muito de 1970 para cá. Como foi possível manter-se atualizado perante tanta mudança? A fama que tem é a de ser considerado, dentro do Benfica, já como jogador e depois também como treinador e a seguir como dirigente, alguém que se interessava pelas coisas novas, que estava sempre interessado em ler livros, e que chegou a aprender de propósito inglês porque percebeu que a partir de determinada altura isso lhe iria fazer muita falta…

— Quando fui convidado para secretário técnico, comecei a ter aulas pessoais de inglês, que era para ter uma relação mais fácil e direta com os jogadores que chegavam. Mas antes disso, enquanto jogador, quando vinham reforços estrangeiros, por exemplo, o Mats Magnusson, um dos contratos de amizade que fizemos foi que nós ficávamos no mesmo quarto, eu ensinava-lhe português, o que lhe facilitava a integração, e ao mesmo tempo aprendia inglês com ele.

JMD — Isso era porque o Shéu era de confiança, porque as primeiras palavras que se ensinavam aos estrangeiros eram normalmente as piores…

— O balneário encarregava-se disso…

A evolução do futebol

VS — O futebol foi evoluindo, e será que a vida de hoje num balneário tem alguma coisa a ver com o que acontecia no passado, quando se faziam amizades para a vida?

— Posso considerar-me um homem feliz nesse aspeto, porque ainda hoje posso fazer uma retrospetiva desse caminho, daquilo que se transformou no futebol, quer na organização, quer na abordagem. Naturalmente que precisava de recorrer a algumas coisas do passado, mas o presente era apenas o caminho para o futuro e tinha de adaptar-me.

VS — O público, antes, era mais exigente?

— O público também se foi adaptando aos novos tempos. No Benfica, um clube do povo, havia muito contacto com os adeptos e por vezes até havia quem estranhasse e se interrogasse se os jogadores não estavam perto demais. Por vezes até entrei em confronto pessoal, porque tinha um pensamento diferente daquilo que diziam ser a atualidade.

JMD — O Benfica, por vezes, ia jogar a vilas por esse Portugal, e à entrada da localidade estava a banda de música, acompanhada das forças vivas, e o autocarro lá seguia a romaria até aos Paços do Concelho para uma receção, e tudo isto em cima da hora do jogo…

— Pois, e o ritmo de um autocarro não é aquele, muito menos o do jogador, que o que quer é chegar ao balneário e concentrar-se. Mas isso mudou radicalmente. Hoje em dia as equipas são quase tipo legos, colocadas no sítio, e são mudadas conforme a necessidade. E eu concordo que seja feito como se faz agora…

JMD — Há pouco falou em ex-colegas que lhe eram queridos e que faleceram recentemente. Será que hoje os jogador têm tempo para criar laços e vínculos fortes entre eles?

— Recorda-se dos Deserdados da Sorte? Eram aqueles que, num balneário, não pertenciam a nenhum grupo. Especula-se muito, mas quem faz os balneários são os próprios jogadores É lá que tudo se põe a nu, e nasce a coesão. Normalmente, mesmo que alguém chegue individualista, acaba comunitário. No meu tempo havia relações quase familiares. Mas nem vou por aí. Nós não jantávamos, não almoçávamos todos os dias juntos, e tenho grandes amigos e nunca almocei ou jantei nas casas deles. Mas ali, naquele sítio do trabalho, era como se fôssemos irmãos. Mas, ao fim e ao cabo, o que conta é o que se faz no jogo. Posso dizer que pertenci a vários balneários ao longo dos anos e se me perguntarem se toda a gente se dava muito bem, digo, perentoriamente, que não. Mas o que importava era, de facto, dentro das quatro linhas, onde ninguém quer perder. Nem o treinador, que coloca em campo este ou aquele jogador no pressuposto de que lhe garante mais hipóteses de vencer.

O papel do treinador

VS — Mas o treinador, com as suas características, a sua personalidade, acaba também por ajudar a fazer melhor ou pior balneário?

— Há treinadores que vão poucas vezes ao balneário, porque querem manter os jogadores sob tensão. Outros são mais próximos e ainda há os que se sentam ao lado do jogador.

VS — Deixe-me fazer o papel, também, de cardeal diabo. Vou dizer dois nomes: Mário Wilson e Pal Csernai…

— Pois, com Wilson íamos ter com ele e o capitão perguntava: «O que é que se passa, pá?» Csernai, eventualmente, terá entrado na cabina para dar alguma palestra. Há quem consiga gerir a sua liderança através do olhar, e não da palavra ou da presença, características que me parecem fundamentais para um bom ambiente.

VS — Há uma relação do Mário Wilson com o Shéu, pelas suas origens moçambicanas e também por alguns aspetos da personalidade e do humanismo, sempre serenos. Concorda?

— Sim, penso que sim. Se fizermos uma pequena análise entre os provenientes dos vários sítios, percebemos que há uma característica semelhante entre os moçambicanos, que é a serenidade. Aprendemos muito cedo o respeito pelas pessoas e a considerar os mais velhos, que em África são como uma fonte de sabedoria…

VS — No seu caso, ainda com alguma influência oriental.

— Sim, e quando se mistura a essa serenidade um pouco de chinês, melhor ainda…

O dia em que Eusébio largou as muletas para ir jogar

JMD — Quando chegou, em 1970, teve oportunidade de jogar numa das melhores equipas de juniores da história do Benfica e dois anos depois estava a trabalhar sob as ordens de Jimmy Hagan e a partilhar balneário com uma série de monstros sagrados. Como foi essa transição?

— Para mim, foi uma dádiva. Lembro-me de chegar à cabina e quase não me mexer…

JMD — De que lado da cabina estava, do lado dos cobras ou do lado dos minhocas? Porque nesses anos a cabina do Benfica era dividida a meio pela rouparia e os consagrados estavam num lado e os restantes no outro…

— Fiquei do lado dos cobras e ainda hoje não sei porquê. Chegava para o treino da manhã, dizia bom dia e normalmente não respondiam. Portanto, era já hábito que não respondessem. Mas se por qualquer razão eu não dizia bom dia, havia logo quem reclamasse. Aí equipava-me sem dar nas vistas no meu sítio, porque não queria incomodar ninguém. Mas essa era uma barreira que tinha de ser ultrapassada para vingar. Por exemplo, se nós, miúdos, queríamos uma massagem, não havia, mas para os consagrados havia sempre.

VS — Lembro-me do Eusébio contar que tratava sempre Mário Coluna por sr. Coluna, o que mostra o respeito que havia entre colegas da mesma equipa…

— Para mim, que estava a chegar, era uma prova, e tinha de dar o salto. Só assim era possível adaptar-me ao balneário onde estavam os monstros de que falava. Estava lá metade da equipa do Mundial de 1966…

VS — Ainda com o Eusébio em boas condições físicas?

— Sim, em muito boas condições. Tenho uma recordação fantástica dele. Jogámos em casa, para a Taça, com o Montijo e ele lesionou-se num pé. Íamos, a seguir, fazer uma digressão de um mês e o Eusébio foi de muletas. O primeiro jogo dessa digressão foi em Nuremberga, na Alemanha, contra um misto do Nuremberga e do Bayern de Munique, que levou, entre outros. o Beckenbauer e o Muller. Chegámos lá, estádio cheio, 65 mil pessoas, e o Eusébio não podia jogar. Quando a constituição da equipa foi entregue à organização, disseram que assim não podia haver jogo, porque o Eusébio jogar fazia parte do contrato…

JMD — Aliás, recentemente o Al Nassr teve uma digressão cancelada, e já estava na China, por CR7 se ter lesionado…

— Mas nessa tarde, em Nuremberga, o senhor Fernando Neves, que chefiava a comitiva, chegou à cabina, onde eu estava, à civil, porque não ia jogar, e o Eusébio estava a fazer tratamento, e disse que não ia haver jogo porque o Eusébio não podia jogar. E não é que foi o próprio Eusébio a tomar a iniciativa, dizendo que fizessem o que fosse preciso, que por ele jogava? Chegou de muletas, e foi a jogo. E ainda marcou um golo, fez uma assistência e empatámos 2-2.

Marcas indeléveis

JMD — Em meio século de Benfica conheceu muitos treinadores, durante 19 anos como jogador, o resto do tempo como secretário técnico. Qual deles o marcou mais?

— Mário Wilson, é indiscutível. A vivência dele em Coimbra deu-lhe uma capacidade de intervenção de grupo que muito poucos possuíam. Muitas vezes, quando chegava ao balneário, em dia de jogo, a faltar uma hora, e ele aferia o estado da equipa em função de um olhar, dava um grito e toda a gente, a partir dali... Era alguém que tinha a perceção de qual era o estado de espírito dos seus jogadores. Muitas vezes, nas palestras, invertia os papéis e obrigava-nos a pensar no assunto e isso era bom para o jogador, porque estava pouco habituado nesse tempo a fazê-lo.

VS — A antítese de Jimmy Hagan?

— Jimmy Hagan era um treinador que concentrava a sua influência na equipa no aspeto físico. Trabalhava muito.

JMD — Apanhei-o no Belenenses em 1980/81, já menos radical, e ele tinha uma frase lapidar: «Senhor, se trabalhar todos os dias duas horas, depois ao domingo joga hora e meia sem problemas.»

— Era um indivíduo curioso. Não se importava, por exemplo, que lhe dissessem que um jogador tinha sido visto num bar a altas horas. Dizia que se treinasse bem e jogasse bem, estava tudo resolvido e jogava. Portanto, nesta coisa dos treinadores, eu tive a felicidade de receber, de todos, alguma coisa.

VS — Depois veio Eriksson…

— Mentalidade! Lembro-me que antes, nós, muitas vezes, jogávamos com cinco jogadores a meio-campo. Ou não tínhamos avançado nenhum. Fazíamos isto e aquilo. E ele chegou e passou a construir as equipas da frente para trás, sempre em 4x4x2. Foi o mais transformador.

JMD — E na segunda época [1983/84], o Benfica jogou muitas vezes com três defesas (Pietra, Bastos Lopes e Álvaro), com o Shéu como trinco, a fazer exatamente o que Guardiola, dez anos depois, passou a fazer com Johan Cruyff.

— Isso começou com um jogo para a Taça dos Campeões Europeus em que perdemos, em Atenas, com o Olympiakos por 1-0. Uma semana antes do jogo da segunda mão, na Luz, chamou-me, particularmente, e disse-me que ia fazer uma transformação que nunca tinha sido feita, e que a chave passava por mim. E explicou: ‘Vou tirar um central e você joga à frente do único central.’ Mas, para mim, a verdadeira chave estava na movimentação dos nossos pontas de lança, que tinham de pressionar a saída de bola do adversário e evitar que esta fosse colocada em boas condições na frente. Também passava por mim, porque tinha que ler bem a movimentação defensiva, para ganharmos a primeira bola [Benfica jogou em 3x1x4x2, formado por Bento; Pietra, Bastos Lopes e Álvaro; Shéu; José Luís, Carlos Manuel, Stromberg (Padinha, 72) e Chalana; Filipovic (Maniche, 22) e Diamantino].

VS — Uns mais, outros menos, cada treinador deixou uma marca?

— De certo modo, todos os treinadores deixaram o seu traço. Por exemplo, o Mourinho tinha o compromisso fantástico com cada jogador. E a seguir conseguiu o mesmo de grandes vedetas internacionais, espalhando magia por todo o lado.

O caso de Pal Csernai

JMD — Foi Pal Csernai que o fez passar os momentos mais difíceis da carreira?

— Quando chegou, Csernai organizou um comité de aconselhamento, a que quis que pertencesse. Quando percebi que nós tínhamos de dizer se devia jogar o António ou o Manuel, vi que esse não era o meu papel, e dispensei-me da tarefa…

JMD — Isso era o que ele fazia no Bayern, onde tinha um núcleo duro de jogadores, com quem decidia quem ia a jogo.

— Pois. E eu dispensei-me dessa coisa, e a partir dali fiquei um bocadinho de fora.

VS — Mas quantos jogadores estavam nesse comité?

— Depois de eu sair ficaram dois. Mas o problema de Csernai era que não era daqueles treinadores que vinham para construir, estava apenas interessado em ter equipas já feitas. Portanto, é necessário que a análise também passe por aí, não é? Ele não tinha paciência para construir equipas…

JMD — Houve um jogo em que o Pal Csernai nem sequer o convocou e o Shéu nem ao estádio foi…

— Fui passear com a família para Elvas, e nessa tarde nem o relato do jogo ouvi. Não foi fácil…

JMD — Porém, essa época acabou com o Shéu a ser o melhor jogador em campo na final da Taça de Portugal [3-1 ao FC Porto, no Jamor]…

— É verdade e foi uma coisa engraçada, que teve a ver com algo que já referi. Confesso que fiquei para morrer. O comité que aconselhava Csernai reuniu-se na véspera do jogo, e um dos elementos, que era meu colega de quarto, disse-me: «Prepara-te que amanhã vais jogar.» Eu já não jogava há seis meses, e nessa altura tive um colega e amigo, que também me está a fazer esta entrevista, que me ajudou mentalmente a preparar-me para o jogo. Mas foi uma das cenas mais surrealistas da minha carreira, e um momento muito difícil.

JMD — Conversámos muito antes desse jogo…

— Falámos da vida, de muitas coisas. Mesmo no Estádio Nacional, fomos lá para um canto e não estivemos a conversar de futebol. Foi, de facto, um momento estranho.

JMD — Pode ter sido surreal, mas a verdade é que o Shéu foi titular, jogou o que sabia, foi o melhor em campo e o Benfica ganhou essa final. Devo confessar que o Shéu me ofereceu a camisola que usou nessa tarde [10 de junho de 1985].

— Grandes memórias…

Tempos de mudança

VS — Há coisas que os adeptos do futebol gastam de saber. Por exemplo, por onde passaram as grandes evoluções nas últimas décadas? Pelos sistemas táticos? Pelas estruturas envolventes? Pelo maior apoio que os técnicos recebem? Ou pela evolução do guarda-redes, hoje um elemento fundamental ao também jogar com os pés? Como é que vê esta transformação e evolução do futebol?

— Acabou de enumerar todas essas valências, que vieram, de facto, a influenciar a evolução do futebol. E também o jogador português começou a perceber, através da saída crescente de companheiros para o estrangeiro, que podia fazer parte do top, e assumiu esse desafio. Foi acompanhado, neste processo, pela evolução do treino, e nesse contexto o treinador português foi capaz de colocar-se, rapidamente, num patamar muito alto. Com a mentalidade certa, tudo é possível. Veja-se o Bernardo Silva: não tem físico por aí além, não é alto nem espadaúdo. Mas coloca a mentalidade e a inteligência ao serviço do jogo. E a verdade é que podemos fazer tudo e ganhar tudo.

JMD — Apanhou, na sua primeira época de sénior, Jimmy Hagan, que, com bases empíricas, o fazia subir o Terceiro Anel com o Matine às costas e hoje há departamentos especializados de fisiologia para dizerem qual o limite de esforço de cada jogador.

— A evolução de que falei há pouco tem muito a ver com essa chamada estrutura, composta por várias pessoas, sem as quais o trabalho não conta muito. Foi preciso criar uma nova linguagem, que os treinadores já apreenderam. Porque não é fácil a um elemento da estrutura ir dizer ao treinador que um determinado jogador não pode treinar naquele dia, ou que a carga de treino não pode superar determinado limite. Antigamente o treinador não ligava. Hoje há bases científicas, o treinador pergunta porquê, e é-lhe dada a explicação.

JMD — Também a dieta do atleta se alterou bastante…

— Agora, depois do jogo, o jantar é estudado para repor as capacidades perdidas pelo corpo.

JMD — Antigamente jogava-se ao domingo, segunda-feira era folga, e de domingo para segunda ia quase toda a gente para a noite…

— Exatamente…

VS — Por isso, Artur Jorge passou a fazer estágio depois do jogo e a dar folga à terça-feira.

JMD — O que muitas vezes resultava em que em vez de saírem uma noite, os jogadores saíam duas… Mas, Shéu, o que mudou mais terão sido os meios para acelerar a recuperação entre jogos?

— É preciso recuperar rapidamente para se jogar de três em três dias. É preciso repor energias, saber quais são os alimentos que devem ingerir-se, valorizar a qualidade do sono. Por outro lado, antes os treinadores rejeitavam os psicólogos, dizendo que quem tinha de entrar na cabeça dos jogadores eram eles. Isso não só acabou como se chegou à conclusão de que o psicólogo funciona melhor individualmente do que em grupo.

JMD — Em grupo, ninguém se abre…

— Não, só individualmente. Depois, há pequenos mecanismos que podem funcionar muito bem. As informações dos massagistas, ou dos fisioterapeutas, são importantes, mas deve haver quem coordene tudo isso, para a comunicação fluir e chegar a quem decide de forma correta.

VS — E o balneário?

— Quando se entra no balneário, muitas vezes está um incêndio. E a primeira coisa a fazer não é perguntar quem foi o culpado, mas sim apagar o fogo. Depois, tenta-se perceber o que aconteceu…

Alguns presidentes

JMD — Quando chegou ao Benfica, o presidente era Borges Coutinho e a seguir trabalhou com Ferreira Queimado, Fernando Martins, João Santos, Jorge de Brito, Manuel Damásio, Vale e Azevedo, Manuel Vilarinho e Luís Filipe Vieira…

— Estamos a analisar tempos diferentes. Lembro-me que quando Borges Coutinho entrava no balneário, nós levantávamo-nos. E o que víamos nele era uma aura especial. A seguir chegaram Ferreira Queimado, Fernando Martins, João Santos, Jorge de Brito, que eram presidentes que começámos por olhar muito de longe e que progressivamente se aproximaram do balneário. Quase como se parecessem, aos nosso olhos, mais humanos.

JMD — Fernando Martins tinha uma política avant-garde de ordenados baixos e prémios altos e fazia questão de ser ele mesmo a ir ao balneário, imediatamente antes do jogo, dizer quanto era o prémio.

— Claro que houve sempre um cunho pessoal. Apanhei nove presidentes, todos eles com a sua influência. Nós sabíamos, por exemplo, que Jorge de Brito era a pessoa que, se houvesse algum problema, se chegava à frente com facilidade. João Santos trouxe consigo uma equipa, na qual se apoiava, que transformou a forma de governar o clube. Na verdade, começou a sentir-se uma evolução: os faxes apareceram e passou a haver uma nova forma de comunicação, os computadores chegaram aos serviços e nós começámos a sentir isso. Depois houve um período difícil, que todos conhecemos, e que foi ultrapassado com a chegada de Manuel Vilarinho.

JMD — Passou as passas do Algarve com Vale e Azevedo…

— Em termos de relação pessoal e profissional, não. Mas tive propostas de executar coisas a que, felizmente, tive a capacidade de dizer não. Mas foram difíceis de entender.

JMD — Um dia foi o Shéu que teve de pagar o estágio da equipa do seu próprio bolso…

— Eu não queria chegar aí, mas já que o disse… A visão que tinham das coisas era diferente e nessa altura disseram-me que fôssemos para o parque de campismo…

VS — Cada um levava uma tenda…

— Eu pensei que aquilo era uma brincadeira, mas não, era a sério e eu disse para comigo, «vamos lá resolver esta questão», e foi o que fiz.

O que é a mística?

VS — Fala-se muito da mística do Benfica, e sei que muitas vezes já lhe perguntaram sobre isso. Os tempos mudaram, as mentalidades também e a pergunta que faço é se hoje em dia ainda é possível criar uma mística?

— Muitas vezes a mística transmite-se com um olhar, uma atitude, sem que se diga o que quer que seja, mas fazendo. E como é que se transmite esse olhar? A mística não é uma teoria, é uma prática e um estado de alma. É aquilo que podemos fazer sem ninguém perceber como e porquê. Eu ainda me lembro de Mário Wilson dizer-me, «se te sentes cansado, olha para o adversário que está ao lado, que ainda está pior que tu.» É, então, uma questão de dar mais um bocadinho de gás, às vezes aquele que se está a guardar para o fim, e fazendo-o ultrapassa-se o cansaço. É a materialização de uma sucessão de valores, que vão fazer com que atinjamos um patamar sempre mais alto.

VS — E hoje?

— Dizer que hoje é possível fazer isso é muito difícil. O que conta, no fundo, é a relação profissional, e as linhas vermelhas são traçadas pelo aspeto contratual.

VS — Se jogasse nos tempos de hoje, onde é que o Shéu Han mais gostaria de se ver? Em que campeonato gostaria de jogar para além do campeonato português?

— Seria mesmo no campeonato português. E no Benfica…

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