Perdeu amigos em Hillsborough e deixou de odiar o Liverpool, mas continua fanático pelo Everton (ao ponto de ameaçar não voltar)
Goodison Park (Foto: Luís Mateus/A Bola)

Perdeu amigos em Hillsborough e deixou de odiar o Liverpool, mas continua fanático pelo Everton (ao ponto de ameaçar não voltar)

INTERNACIONAL15.12.202323:32

A história de uma conversa incrível dentro de um Uber pelas ruas da cidade dos Beatles

Não resisto a contar-vos a história do Thomas, o melhor condutor Uber que já apanhei.

Aviso-vos que o condicionei um pouco. Disse-lhe que tinha visitado um amigo no Liverpool. Não era mentira, mas rapidamente se tornou o catalisador de quase uma hora de conversa a atravessar o trânsito da cidade, a caminho da estação de caminhos de ferro de Lime Street.

Não costumo ter muita paciência ou talento para conversas de circunstância. Porque é que dois estranhos que estabelecem um acordo comercial têm de saber mais um sobre o outro se nunca se voltarão a ver? Qual a probabilidade de se encontrar o mesmo condutor sequer na mesma cidade? Só peço que a viagem acabe depressa! 

No entanto, desta vez, até terei sido bom interlocutor. Ou pelo menos o interlocutor certo para o Thomas. Uma espécie de barman, bom ouvinte e disposto a quebrar qualquer formulação de Lei de Murphy que venha do outro lado do mesmo balcão que seco com a toalha. 

Curiosamente, não foi o primeiro scouser chamado Thomas que se atravessou hoje no meu caminho. Depois de almoço, chamei um primeiro Uber. Qual é a probabilidade? De debaixo de um apunkalhado moicano que há muito parece ter parado no tempo, saiu rapidamente um red till I die. Aconteceu logo após a habitual pergunta de onde era e o que estava ali a fazer, provocado naturalmente pelo meu estranho nome. Só não percebo o que é que ele tem de polaco…

Anfield (Foto: Luís Mateus/A Bola)

À noite, a Mercedes de nove lugares que me calhou em sorte era bem mais desconfortável e piorou quando o novo Thomas, careca assumido com recurso a gilete - somos cada vez mais -, quis escancarar a alma para mim. Para o conseguir ouvir, tive de viajar meio de lado, meio de costas, contra o trânsito. 

You know what I am sayin’? 

Confirmava frase sim, frase não se, afinal, o estava a entender. Repetia-o quase tantas vezes quantas as que disse 

I think we’ll get them back, I always will!

Já lá vamos.

Liverpool? Bela equipa, vão ganhar a Premier. Já não saem dali, do primeiro lugar, estes dois jogos são cruciais. Se os ganham já não os apanham. O City? Cometeu um erro enorme, deixou o Gundogan sair quando foi ele que marcou os golos quando o De Bruyne não estava e agora sem o De Bruyne não há quem marque. Mas eu sou Everton! Vivo com os dez pontos de dedução, mas acho que os teremos de volta. É o que penso sempre.

Goodison Park (Foto: Luís Mateus/A Bola)

A história seguiu-se. De amigo para amigo. Com todos os pormenores. Foi mais ou menos assim...

Usmanov comprou ações do Arsenal a David Dein e cresceu até se tornar o maior acionista. Vendeu a sua participação no clube ao norte-americano Stan Kroenke em 2018 por 550 milhões de libras, um valor muito superior ao que gastou. Entretanto, o iraniano Farhad Moshiri, um antigo contabilista com quem Usmanov dividia as ações do Arsenal, tornou-se o principal acionista do Everton e abriu-lhe as portas de Goodison Park com vários acordos de patrocínio: a MegaFon, a segunda maior operadora de telecomunicações russa, da qual era coproprietário, colocou o seu nome nas mangas dos equipamentos de treino, tornou-se o parceiro oficial do clube no dia das partidas e ainda da equipa feminina; e a sua USM garantiu o naming do centro de treinos, a Finch Farm. Com a invasão da Rússia à Ucrânia, todos acordos foram suspensos devido às ligações de Usmanov a Vladimir Putin. Desta forma, o Everton perdeu uma fortuna e o equilíbrio financeiro, e foi castigado, já que o contabilista acabou por não saber tapar o buraco. As consequências foram a perda dos dez pontos.

I think we’ll get them back, I always will!

Thomas não entende, lamenta-se. Se os Sly Six (os seis manhosos) são apenas multados por pretenderem sair da Premier e criar a Superliga Europeia, abanando toda a estrutura do futebol britânico, por que razão o Everton tem de perder pontos? E acrescenta: e não é só, está-se a construir um novo estádio e a requalificar a zona das docas, com muitos novos postos de trabalho criados. 

Isso não tem valor?

Ah, o Liverpool

Recomeça.

Bela equipa, belo treinador. Sabes que Anfield era nosso? O estádio onde jogam agora era do Everton em 1884, oito anos depois de ter sido fundado [na verdade estava alugado, o dono do espaço e John Houlding, um dos membros da direção do Everton, eram amigos], mas depois o John Houlding e os restantes membros desentenderam-se, começou-se a construir Goodison Park e o campo ficou abandonado. Foi então que Houlding criou uma equipa, que até tentou chamar de Everton. No entanto, o nome foi recusado no registo e ficou como Liverpool. Sabes que somos 60% Everton e 40% Liverpool nesta cidade? Eles têm mais adeptos pelo país e pelo mundo, mas em Liverpool somos mais! E eu já fui um hater, mas já não sou mais. Não quero que ganhem um lançamento lateral quanto mais um jogo, mas não sinto ódio. O meu ódio morreu quando aconteceu o desastre de Hillsborough [Liverpool-Nottingham Forest, meia-final da Taça de Inglaterra de 1989, morrem 96 pessoas por esmagamento nas bancadas]. Morreram lá dois amigos meus. Fui ao funeral e ao meu lado estava a caminhar o Kenny Dalglish. Era um homem quebrado por dentro, destroçado. Percebi nesse dia que havia coisas mais importantes do que o futebol. Disse aos meus amigos que não queria nunca mais ouvir falar mal do Dalglish. 

Goodison Park (Foto: Luís Mateus/A Bola)

O meu condutor continua. Está disposto a contar-me toda a sua vida de adepto. Nem eu nem o trânsito parecemos conseguir travá-lo.

Vejo jogos do Everton no estádio desde que nasci. Vejo todos os jogos. Vi grandes equipas, vi equipas menos boas. Nunca quis saber se perdiam ou ganhavam. Vou sempre. Quero que deem o máximo, só isso. Vou dizer-te uma coisa. Estamos a jogar melhor agora do que antes de nos terem retirados os pontos. O Sean Dyche é muito exigente. Mas se não recuperarmos os dez pontos e descermos de divisão não vou mais, acabou-se. A minha mulher está sempre a perguntar-me porque me dou ao trabalho, mas agora se isso acontecer vou mesmo dar-lhe razão. Há tantas coisas piores. O Manchester City tem não sei quantas acusações e soube hoje que pode ser julgado apenas daqui a sete anos. Em sete anos ganha sete Ligas dos Campeões, sete Premier Leagues e acumula riqueza. E nós temos dez pontos retirados. Não me cheira nada bem. Eu acredito que os devolvem, acredito sempre. Mas se não devolverem e descerem de divisão, garanto: não vou mais!

Thomas volta a Anfield num piscar de olhos.

Não ganhamos em Anfield há 24 anos, desde 1999, e eu estava lá. Ganhámos na altura do Covid, em 2021, com o Carlo Ancelotti no banco, mas não estávamos lá. Não festejámos, não conta. E este ano já perdemos. Em Anfield, podemos ter os árbitros todos vestidos de azul, jogarmos contra sete e com o Messi, o Ronaldo e outros na nossa equipa que perdemos sempre!... Não sou um hater, mas sabes que quando nos encontramos dizemos-lhes: estamos a dançar com o diabo. O estádio foi construído onde havia um afluente, o Devil’s Brook, o afluente do diabo, que foi desviado. Por isso, dizemos-lhes quando nos defrontamos que estamos a dançar com o diabo.

Goodison Park (Foto: Luís Mateus/A Bola)

You know what I am sayin’? 

O telemóvel dá o alerta. Chega a solicitação para uma viagem no valor de 12 libras. Thomas ainda hesita, mas aceita. Em vez de seguir o trajeto normal, encosta à direita, encurta uns metros e diz-me

Do you want to jump out? The station is right there.

A entrada estava mesmo ali ao lado. Claro que não me importei. E confesso que já me doíam as costas pela forma como me sentei na carrinha para poder ouvi-lo melhor.

Voltei à aplicação enquanto subia as escadas de Lime Street para lhe dar cinco estrelas. Merece-as.

Se o virem por aí, deem-lhe um abraço. Rapidamente o reconhecerão. E para que não deixe de ir ao estádio espero mesmo que lhe devolvam os dez pontos. Ou, pelo menos, que o Everton não desça ao Championship. Um adepto a sério e o melhor condutor Uber da história! Garanto.

You know what I am sayin’?