Bielsa 4.0: a reinvenção uruguaia de ‘El Loco’
Venceu Brasil e Argentina e só o golo de Otamendi no Maracanã o impediu de ultrapassar a campeã mundial e ser líder; obcecado e obsessivo, Marcelo Bielsa é um dos maiores influenciadores do futebol moderno, mesmo sem títulos que o demonstrem
Marcelo Bielsa chegou há cinco meses ao cargo de selecionador do Uruguai, o terceiro à frente de uma equipa nacional, depois da Argentina (1998-2004) e do Chile (2007-11). Perdeu no Equador, empatou na Colômbia e entrou finalmente em velocidade de cruzeiro, com triunfos sobre o Brasil no Estadio Centenario e na Bombonera diante da Argentina, ambos por 2-0, antes de destroçar a Bolívia com três golos sem resposta. Não há quem no país não grite já pelo seu nome, com o sucesso a ser levantado em cima do remanescente das maiores figuras da Celeste Olímpica – Edinson Cavani e Luis Suárez –, assentando dinâmicas num meio-campo feroz e na explosão de Darwin Núñez. El Loco está, sem dúvida, de volta.
Já não é tão evidente quando pensamos nele, porém o trota-mundos é argentino. E qualquer técnico do país das Pampas ou é bilardista ou menottista. Bielsa, contudo, conseguiu fugir aos rótulos. Não é dominado nem pelo resultadismo de Carlos Bilardo nem pelo romantismo e futebol-arte de César Luis Menotti, mas sim bebeu influências de ambos e criou uma terceira via, a sua, que já inspira outros como Diego Simeone, Mauricio Pochettino, Eduardo Berizzo, Lionel Scaloni e Sérgio Conceição. Até Pep Guardiola já assumiu paralelismo entre algumas das suas ideias e as de El Loco, a quem considerou, a certa altura, o «melhor treinador do mundo» e visitou logo após ter decidido tornar-se treinador.
Proveniente de uma família respeitada e influente de Rosario, com um passado académico em agronomia e acabado de se formar em Educação Física, pendurou as chuteiras no Newell's aos 25 anos para se dedicar ao treino, depois de perceber que, como central e após algumas lesões, não iria longe. Só que a paixão era mesmo o futebol. Nunca, no entanto, ao ponto de imaginar que, fruto desse amor, o estádio em que jogou e que passaria a olhar com contemplação a partir do banco levaria, a partir de 2009, o seu nome.
Bielsa 1.0: o Newell's, primeiro e grande amor
O Newell’s acolheu-o primeiro como olheiro, depois como responsável pelas camadas jovens e, por fim, como técnico principal. Juntamente com Jorge Griffa, antigo central que coordenava a formação e que se tornou o seu amigo mais próximo, dividiu o mapa do país em 70 zonas de cerca de 80 km quadrados, percorrendo-as ao volante do seu Fiat 147 branco. O objetivo era encontrar jovens talentos para os leprosos. Em 1990, aos 34 anos, quando foi nomeado responsável pelos seniores, ninguém conhecia como ele a cantera, que tinha conquistado o título nacional sob o seu comando dois anos antes.
O período áureo de José Yudica, com um campeonato ganho e uma presença na final da Libertadores (derrota com o Nacional Montevideu), tinha passado. Jogadores como Sensini, Balbo, Basualdo e o goleador Víctor Ramos saíram e não havia dinheiro para investir. Gabriel Batistuta e Mauricio Pochettino, recrutados na sequência das mil viagens no Fiat, eram reservas. O guarda-redes Norberto Scoponi, o ídolo das bancadas Gerardo ‘Tata’ Martino e o médio Juan Manuel Llop formavam a espinha dorsal que enquadrava a juventude. E Bielsa unia todas as pontas com as suas ideias. «A variedade das nossas táticas mudou a estrutura mais convencional do nosso futebol. Um mesmo jogador podia estar na defesa, subir para o meio-campo ou ser extremo», explica Pochettino no livro de Tim Rich The Quality of Madness: a Life of Marcelo Bielsa. O grande desafio era não dar espaço, mantendo a compacidade.
A primeira época, a de 1990-91, é fantástica. Perde com o Argentinos Juniors e com o River Plate, mas fica tão desgostoso com o resultado diante dos Millonarios que jura que se o Newell’s marcar cinco golos ao Rosario Central no dérbi que se segue corta um dedo: ganha por 4-3! No jogo decisivo precisa que o Veléz bata o River e o ajude a ganhar o Apertura e é o que acontece. Não consegue aguentar a espera, sai do estádio a correr, mas volta aos gritos de «Newell’s carajo!»
Segue-se uma má campanha no Clausura (8.º), mas conquista mesmo o título argentino nos penáltis, com um Scoponi em grande. Na época seguinte, arrecada novo Clausura, depois de mais uma má primeira metade de época, em que chega a isolar-se, percebe o que não está a chegar onde quer e reinventa-se, o que consegue com uma ainda maior insistência nas suas ideias. Antes, chega a afastar de sua casa uma barra brava furiosa ainda de pijama e com uma granada nas mãos. Não há desta vez uma final nacional, porém chega ainda à decisão da Libertadores, que perde para os brasileiros do mágico São Paulo de Telê Santana, Cafu, Raí e Müller, novamente no desempate dos 11 metros.
Do México à Albiceleste
Bielsa parte para o Atlas, do México. À distância, em 2018, doa 2,1 milhões de euros para a construção de um hotel para o Newell’s, a fim de «pagar uma dívida» de gratidão, que serve também como prenda pelo 115.º adversário. O edifício passa a chamar-se… Jorge Griffa, o nome do velho amigo. Passa do Atlas para o América, do América de novo para a Argentina e para o Vélez, pelo qual ganha um terceiro Clausura. Está três meses no Espanhol, todavia não resiste ao convite da seleção argentina, onde chegam ao fim os quatro anos do reinado de Daniel Passarella.
Em 1999, é copiosamente derrotado na fase de grupos da Copa América por 3-0 pela Colômbia, num jogo em que Martin Palermo falha três penáltis e ele próprio é expulso, e acaba eliminado nos quartos de final pelo Brasil. Fracassa posteriormente na primeira fase do Mundial de 2002 e atenua o insucesso com a conquista do ouro olímpico em 2004 – o primeiro de um país sul-americano desde 1928 –, ano em que também atinge a final de novo torneio continental, deixado escapar para o Escrete, novamente nos penáltis.
Adorado do Chile a Bilbau
Demite-se e passa três anos sabáticos sem treinar. Volta à tona como selecionador chileno. Entretanto, vai recusando convites: não há meios-termos, ou fazem ou não fazem sentido. Qualificada pela primeira vez após dois fracassos, a Roja cai nos oitavos do Mundial 2010 diante do Brasil, por 3-0.
Adorado pelos adeptos, Marcelo ameaça demitir-se se Jorge Segovia, que o tinha chamado de «pateta» durante a fase final, controla dois clubes chilenos e é testa de ferro do líder do país Sebastián Piñera, for eleito presidente. Perante o resultado do sufrágio, não volta atrás. Faz as malas.
Bielsa 2.0: do grande Athletic ao quase-Athletic
Parte novamente para Espanha e é no Athletic que se reinventa, apesar de, mais uma vez, os títulos não quererem nada com ele. Perde as finais da Taça do Rei e da Liga Europa de 2011-12, respetivamente para Barcelona e Atlético Madrid, já depois de ter afastado Manchester United e Sporting na prova da UEFA.
Com o falhanço na reta final, espalha-se a lenda de que esgota fisicamente as suas equipas até ao Inverno. No entanto, o futebol praticado pelos bascos é do melhor visto em San Mamés e no resto de Espanha, e soma exibições memoráveis diante dos colossos Real Madrid e Barcelona. Um 12.º lugar na segunda temporada empurra o clube a não negociar novo contrato.
Marselha, Lazio e Lille, a travessia no deserto
O Marselha é o destino seguinte. Ainda leva o OM ao título oficioso de campeão de Inverno, mas cai para o quarto lugar no final. Após derrota com o Caen na época seguinte, anuncia a demissão, alegando discordâncias com a direção.
Muda-se para a Lazio, em Itália, mas a aventura dura dois dias. Alega que as suas exigências não foram cumpridas em tempo útil no que diz respeito a contratações e que não vê apoio futuro às suas decisões. Os romanos levam-no a tribunal, pedem 50 milhões de euros de indemnização.
Na época seguinte, em 2017, chega ao Lille. A primeira decisão que toma é informar 11 dos jogadores mais velhos que iriam sair, a fim de poder injetar juventude nos Dogues. Promessas como Nicolás Pépé, Thiago Mendes, Thiago Maia, Fodé Ballo-Touré, Luiz Araújo e Edgar Ié são contratados, criando-se uma estrutura que se tornaria fundamental para a conquista do título quatro anos mais tarde, com Christophe Galtier ao leme. No dia 22 de novembro é suspenso temporariamente e, menos de um mês depois, o vínculo extinguido. Uma viagem não autorizada ao Peru para ver um amigo em fase terminal é, de acordo com o jornalista Fabián Taboada, a origem do processo disciplinar, apesar de o diretor desportivo Luís Campos associar a decisão à sangria de jogadores experientes.
A relação com os jornalistas também não se mostra fácil. Antes de um jogo com o Mónaco dispara, na sequência de algumas críticas: «Sempre que aqui venho sinto que a vossa companhia é desprezível. Tenho sempre de vos enfrentar e entrar em debate, o que faço para vos desmascarar. Vocês são sempre assim: quando vencemos e estamos bem, inventam o pior cenário. Quando a fase não é boa, tudo passa a ser uma catástrofe. É essa a vossa função.»
Bielsa 3.0: finalmente, o bom casamento em Inglaterra
Em Leeds, renasce pela terceira vez. Clube histórico em cidade de operários apaixonada pelo jogo e treinador com uma capacidade de trabalho obsessiva não têm como não dar certo. Não há um jogador que não cresça, adepto que não fique apaixonado.
O início não é, contudo, perfeito. Perde a meia-final do play-off de subida com o Derby County, dá uma palmada no ombro dos jogadores e sai. Ninguém sabe se vai voltar. Até os adjuntos começam a esvaziar os gabinetes em Thorp Arch.
Antes de assinar um novo contrato, Bielsa faz exigências. Há más influências de balneário que tem de afastar, jogadores que não podem sair e outros a contratar. No entanto, apresenta ideias que quer reforçar: uma maior definição à frente da baliza, empréstimos mais proveitosos, menos lesões e uma, por fim, absolutamente necessária… Mais sorte!
A obsessão de El Loco não tem fronteiras nem nunca se completa. Quer dormitórios em espaços tranquilos, corredores abertos para corridas, piscinas funcionais, áreas para lazer e descompressão, estacionamentos espaçados para evitar o stress logo de manhã e uma academia de topo no centro de Leeds. Porque se ele exige compromisso elevado, incluindo uma quarta-feira de murderball – o plantel divide-se em duas equipas e disputa a bola sem tempos mortos, ou seja, sem faltas ou lançamentos, até à exaustão –, tem de haver recompensas. E se alguém fica no relvado a treinar livres porque quer trabalhar «um pouco mais», ele avisa: «Se podes dar um extra é porque não deste tudo no treino!»
As anedotas continuam. Bielsa tem, a dada altura, um relatório de oito páginas do terceiro guarda-redes de uma equipa do final da tabela que ainda não cumprira um único jogo. Outro de um keeper da segunda liga austríaca que joga como central quando a sua equipa tem a bola. Durante o isolamento devido à COVID, perde 19 horas a observar a jovem promessa de 20 anos Alfie McCalmont para poder avaliá-lo com todo o conhecimento disponível. Usa empregados externos, pagos do seu bolso, para recolher uma imensidão dados quando se torna humanamente impossível fazê-lo ele mesmo.
Os jogadores adoram-no, mas faz questão de se afastar: «Quanto mais me conhecerem, menos vão gostar de mim!» Porém, Bielsa também é humano. Aos 72 minutos, com Jonathan Kodjia no chão e o Aston Villa a pedir que a bola pare, o Leeds marca por Mateusz Klich um golo fundamental na luta pela subida. O argentino não quer ser o villain e ordena aos seus jogadores que deixem o rival empatar. Aos 77 minutos, com todos do Leeds parados, Adomah iguala e o Sheffield United garante a promoção direta, relegando o Leeds para o play-off em que acabará eliminado.
Vilão chamaram-no sim, em 2019, quando pede a membro da sua equipa técnica para espiar o Derby antes de um jogo entre as duas equipas. A polícia é chamada ao local, Liga e federação inglesas instauram a Bielsa processos disciplinares. O argentino admite a culpa, mas faz questão de explicar, numa conferência de Imprensa, a razão por tais atos: são páginas e páginas de ficheiros com descrições pormenorizadas sobre centenas, milhares de jogadores. Então, pede: «Digam o nome de um!» E mostra tudo o que tem sobre ele.
Sobe finalmente à Premier e, na primeira época, com uma equipa sem grandes figuras, acaba em nono. O pior vem depois, com o despedimento após um início muito complicado. Não que agora já não se lembrem dele pela cidade. O Leeds não volta a ser tão apaixonante.
Bielsa vezes quatro: um Uruguai à sua medida
Na Celeste Olímpica, encontra um grupo que pode aplicar mais facilmente o seu modelo. Já não é só ele, é uma identidade futebolística que vem das origens do futebol uruguaio e uma fantástica geração, recheada de talento, que ele pode potenciar com as suas estratégias. Tudo faz sentido. Não há quem possa pressionar de forma mais agressiva, defender com os 11 ou alternar a posse e a transição.
A forma como anula Messi na Bombonera sem ninguém andar por perto, dando-lhe ao mesmo tempo espaço para respirar e limitando-lhe todas as opções, é uma masterclass à-Bielsa. O casamento parece, para já, perfeito.
O andar de um lado para o outro em frente ao banco, a geleira em que se senta de mão no queixo a observar todos os detalhes. Não há como não confessar: já tínhamos saudades. El Loco encanta pelas ideias, pela comunicação, pelas lições que dá quando fala do jogo e pelo seu objeto final: agradar às bancadas. É encantador e feroz. Tal e qual as suas equipas.