Espaço Universidade Saudação a Jorge Jesus (artigo de Manuel Sérgio, 315)
Querido Amigo
É bem possível que seja eu o mais velho dos seus Amigos. Isso explica a razão por que não sei exprimir o que, neste momento, me tomou a alma, com a sua vitória, tanto na “Libertadores”, como no Brasileirão. De facto, não há palavras para exprimir os grandes sentimentos. É conhecidíssima a definição de amizade que Montaigne dá aos seus leitores: “Na amizade de que falo, as almas mesclam-se e fundem-se uma na outra, em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem”. E José Tolentino Mendonça explica-nos o que Montaigne quer dizer: “A amizade, para Montaigne, é uma comunhão de espírito, uma espécie de junção das almas. É uma relação inexprimível, intransitiva, absoluta, que não visa modificar, nem ser modificado, pelo outro. Não se trata do encontro entre dois desejos, mas de duas plenitudes” (Nenhum Caminho será Longo, Paulinas, p. 45). Desde que, pessoalmente, o conheço (era o Jorge o treinador principal do meu Clube) tornámo-nos Amigos e, a partir daí, o venho acompanhando, como se fôssemos irmãos, na marcha vertiginosa para o êxito, que tem sido a sua vida de treinador de futebol. Como é do conhecimento público, fiz amizade com outros grandes treinadores de futebol: o José Maria Pedroto (que tinha, há 50 anos, uma visão verdadeiramente revolucionária do futebol) o Fernando Vaz (simultaneamente jornalista e um estudioso de muita leitura) , o José Mourinho (o treinador português de mais brilhante currículo), mas foi com o Jorge Jesus, porque fui seu adjunto, no Sport Lisboa e Benfica (e porque ficámos íntimos Amigos), que mais falei de futebol, que mais futebol aprendi, repito: que mais futebol aprendi. Devo dizê-lo, por imperativo da minha consciência: o meu Amigo tem sido a pessoa que mais me ensina de futebol. Porque sabe mais do que os outros? Não, porque vive o futebol mais do que os outros e viver é mais do que pensar!
Agora, com a sua vitória inesquecível na “Libertadores” e no Brasileirão, sempre como treinador do Flamengo, tudo quanto eu poderia dizer-lhe, a seu respeito, está tudo dito. Natureza rica, múltipla, variada, fascinante (porque de uma cordialidade inigualável), o meu Amigo pertence àquela categoria de pessoas, privilegiados da fortuna, que parecem existir unicamente, para que a Comunicação Social e as Redes Sociais delas se ocupem, diariamente. Hoje, bem vistas as coisas, não é o Jorge que procura o êxito, é o êxito que o procura. Noticiou o jornal A Bola (2019/11/23) que o “mister” Jorge Jesus, no dia em que decidiu ingressar, no Flamengo, disse à sua equipa técnica, num almoço, para “prepararem as malas, porque iriam ser finalistas da Taça dos Libertadores”. E Jesus remata: “Viemos para o Brasil com essa ideia”. Eu, que no Brasil conservo muitos Amigos, aplaudi a ideia do Jorge, de trabalhar no futebol brasileiro. E cheguei a dizer-lhe: “Se, como disse o Sérgio Buarque da Holanda, o brasileiro é o homem cordial, o meu Amigo não é menos cordial do que o mais cordial dos brasileiros”. E afirmei profundamente convicto: “Vá para o Brasil, porque o Brasil é o espaço ideal, para o meu Amigo ser um vencedor”. Quero dizer-lhe, neste ínterim, que já recebi 12 mensagens, do Brasil, salientando o seu valor, a sua simpatia e a sua competência. Querido Amigo, assisti, pela televisão, ao jogo (de 2019-11-24) Flamengo-River Plate, acompanhado da minha família mais próxima e de um treinador de râguebi, o Raúl Patrício Álvares. Finda a primeira parte do jogo, disse, alto e bom som: “ O River Plate não vai ter condição física para continuar na pressão sobre o adversário, que fez durante a primeira parte. E aí é bem possível que a Libertadores seja conquistada pelo Jesus e pelos seus jogadores”. Não sou bruxo, nem futurologista, mas desta vez acertei. Demais, o Raúl Patrício Álvares concordou, imediatamente, com a opinião que me saiu dos lábios…
Quando trabalhei consigo, no futebol, houve três qualidades suas, que me deslumbravam: a sua rápida e certeira leitura de jogo! Uma tática, que não se discute, depois de alargada e enriquecida, pelo diálogo com os seus adjuntos. E o modo como lidera o treino, em relâmpagos de mocidade e de talento! Um treino do Jorge Jesus é intenso e tenso! É um verdadeiro espetáculo, de grande verdade psicológica, porque o Jorge Jesus conhece e ama (conhece porque ama) o futebol, como poucos. Se bem penso, o Jorge Jesus elevou o treino (o treino que lidera)à categoria das obras-primas. Adianto, sem qualquer receio que o treino do Jorge Jesus, quando for admirado e estudado, transcende os limites do clube em que trabalha e projeta-se, com toda a certeza, na história do treino. O êxito do treino de Jorge Jesus não reside em problemas que envelhecem depressa e que se transformam nos assuntos da preferência dos comentaristas que falam, falam, falam e… não dizem nada! O êxito do treino de Jorge Jesus está, acima de tudo, na força e convicção vivificadoras, que animam tudo o que o meu Amigo faz, sempre que lidera uma equipa de futebol. Não há jogos, há pessoas que jogam e, por isso, não há treinos, há pessoas que treinam. Já o disse muitas vezes: é o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Platão fixou um cartaz, na porta da sua Academia (a primeira universidade) onde se lia: “Que aqui não entre quem não sabe geometria”. Ou seja, que nela não entrasse quem não soubesse o que, para Platão, eram os conhecimentos fundantes de todas as coisas. Ora, hoje, o Jorge Jesus tem os conhecimentos fundantes da profissão de treinador de futebol, que num só se resumem: é o ser humano! Nasceu, assim, sem esquecer as qualidades que nele resplandecem e atrás procurei salientar, um dos maiores treinadores que já conheci e conheço.
Pouco antes do jogo Flamengo-River Plate (2-1) Jorge Jesus referiu: “Estou a sentir a responsabilidade e o prestígio de estar numa final da Taça Libertadores. É semelhante ao que na Europa chamamos Champions League porque, ao sair do Ninho do Urubu, senti que havia uma nação, atrás de um sonho e portanto hoje temos essa responsabilidade. Mas não vamos ficar atrofiados por ela, vamos ser movidos pela segurança, pela confiança, pelo prazer. Fisicamente estamos bem. O lado emocional, os comportamentos técnico-táticos também são bons, caso contrário não tínhamos chegado onde chegámos”. Sobre o Gabigol e as suas atitudes disciplinares que, de quando em vez, ultrapassam o risco do permitido por lei, Jorge Jesus foi compreensivo, tolerante, generoso: “Os treinadores, os jogadores, as equipas vão crescendo com os erros, jogo a jogo. Acontece comigo, acontece com o Gabigol. Abordámos esses temas com ele e com os colegas. Faz parte do crescimento intelectual e moral de um jovem jogador de 23 anos”. Relembro a definição de sistema de Edgar Morin: “sistema é a unidade global organizada de inter-relações, entre elementos, ações ou indivíduos”. Ora, no futebol, a organização tática desempenha um papel central, nuclear, no seio de um sistema. Mas não só: para que uma equipa se converta num todo de solidez indestrutível, há qualidades que devem sobrenadar, como a compreensão, a tolerância, a generosidade. Talvez uma palavra diga tudo: a amizade! “Eu sou eu e a minha circunstância” escreveu o Ortega y Gasset. Mas há valores sem os quais impossível se torna viver humanamente. E um desses valores é, sem sombra de dúvida, a amizade. Querido Amigo, senti também o seu patriotismo. O Jorge não se cansa de repetir: “Tenho um grande orgulho de ser português”. Também os seus compatriotas sentem um orgulho enorme ao saber que o meu Amigo é português. Com esta dupla vitória, o Jorge conquistou o respeito e admiração dos brasileiros, mas conquistou também o coração de todos os portugueses. A verdadeira eloquência da gratidão é o silêncio. Assim termino esta minha carta.
Seu… “nunc et semper”
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto