Espaço Universidade Os meus Amigos escritores… (artigo de Manuel Sérgio, 335)
É verdade: hoje, 20 de Abril de 2020, completei 87 anos de vida! Cada vez mais me aproximo do meu encontro inevitável com a eternidade. A minha meditação diária foi sobre a “Expectativa de Deus”, um texto que o colhi no livro de José Tolentino Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas: “É tão exato o título dado ao maravilhoso diário espiritual de Simone Weil: Expectativa de Deus. A nossa vida é isso: espera na certeza e na incerteza, expectativa contínua. É o lugar, não da resolução, mas da vigilância; não do encontro, mas da confiança e da abertura; não da posse, mas do desejo; não do acabamento, mas da imperfeição; não da infalibilidade, mas da paixão. E, nesse sentido, entender a própria vida como luta, é afastarmo-nos de um discurso religioso que vive facilmente de autorreferencialidade, que vive de instalações, porque é muito fácil acomodar-se a uma certeza, a uma fé que afasta de si o risco de viver. A fé cristã expõe-nos desassombradamente à pergunta, à inquietação, à dúvida, ao silêncio, ao sepulcro vazio, àquelas idas e vindas do sepulcro, sem entender nada. Às vezes encontro crentes que me vêm falar, com muito sofrimento, das suas dúvidas, como se elas descaracterizassem a sua fé. Ora, a dificuldade de crer não descaracteriza a fé. Pelo contrário, é um seu elemento fundamental. Está no cerne da experiência crente, constitui um traço necessário, porque a fé é esse caminho, em grande medida desamparado, mesmo se estranhamente realizado sem medo”. A Verdade é uma necessidade constitutiva do ser humano. Quando se chega à minha idade, a procura da Verdade torna-se cada vez mais necessária, porque a morte e Deus se aproximam. Sou um “agnóstico devoto”: não sei quem é Deus, mas vivo como se O conhecesse. E Deus será um Pai, ou um Juiz? Como Pai, ou como Juiz, muitos serão os pecados por que poderei ser julgado. Mas eu acredito em Deus-Pai. Acredito no Deus que Jesus Cristo anunciou – Jesus Cristo, um homem tão perfeitamente humano, que só podia ser Deus…
Depois da meditação, ainda passei por Julián Marías (1914-2005) que, na sua Antropologia Metafísica, nos recorda que “esta vida é a escolha da outra e a outra é a realização desta” (Revista de Occidente, 1973, p. 278). Por fim, lembrei-me da minha querida Mãe e do Torga que tem dois poemas que eu relembrei, no dia dos meus 87 anos:
Aniversário
Mãe:
Que visita tão pura me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nú e pequeno
Como me deixaste.
Ia chorar de medo e de abandono.
Então vieste e outra vez cantaste
Até que veio o sono.
Mãe
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti – não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto – sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Aos grandes escritores, considero-os a todos meus Amigos, tantas vezes os leio, tantas vezes, na sua leitura, exorcizo fantasmas e reencontro inigualáveis fontes de ternura. Há um ponto em que todos somos iguais: é que somos todos diferentes! Mas há poemas (e prosa poética, como a de José Tolentino Mendonça) que emocionam o mais empedernido. Por que não são ciência também todas as expressões de ternura e de amizade e de amor e de ódio, etc., etc.? Ou até as diversas crenças mágicas ditas “primitivas”, as mitologias, as mais antigas elaborações teológicas? Somos herdeiros da filosofia grega, do direito latino, da mensagem judaico-cristã e do espírito crítico do iluminismo. E foi precisamente no ocidente europeu que se manifestou uma recusa metódica das velhas teologias e uma aceitação (muitas vezes religiosa também) de uma ciência que só na observação e na experimentação dizia fundamentar-se. É evidente que o conhecimento humano muito (muitíssimo) deve a Galileu, Descartes, Newton, Kant, Hegel, Marx, Claude Bernard, Pasteur, Einstein, entre tantíssimos mais. Necessário se torna não perder de vista que o nascimento das “ciências humanas” (ou hermenêutico-humanas, no entender de Habermas) é recente. Mas o ser humano não é unicamente Razão e não é unicamente Razão no ato cognoscitivo. Nem tudo, no humano, se pode reduzir a números. Julgo ser fácil reduzir a números um cadáver, mas não uma criatura que chora e ri e canta e ama e, acima de tudo, se movimenta visando a transcendência. Estudei, há muitos anos, o livro de David Cooper, Psiquiatria e Antipsiquiatria (em tradução francesa das Ed. du Seuil, 1970), onde colhi o seguinte: “a relação observador-observado, numa ciência humana, é ontologicamente contínua, ao passo que nas ciências naturais é descontínua e permite uma descrição puramente exterior do mundo observado” (p. 71). Na medicina, por exemplo. O médico não sabe tão-só de uma doença, mas principalmente de um doente, pois que este doente é cultura e, por isso, pode aceitar e recusar e criticar e acreditar e mentir…
Mas será possível um conhecimento objetivo, quando se sabe que qualquer conhecimento é condicionado pela subjetividade de quem conhece? O animal está intimamente ligado à natureza, “faz um” com ela. O ser humano, ao invés, “faz dois” com a natureza, ou seja, (pelo desenvolvimento do neo-cérebro) ele, que dela sai, interroga a natureza. E com questões que excedem, em muito, a física, a química, a matemática e a própria biologia. Interroga a natureza e interroga os seus semelhantes. Aliás, são as relações intersubjetivas e as suas “infinitas” modalidades que constituem, antes do mais, o “facto humano”. Um “facto humano”, exemplarmente humano, foi o amor que os meus Pais me dedicaram . Por isso, os recordo, hoje, com saudade. Mas, sem esquecer, que “o principal risco que a União Europeia corre, devido à crise do covid-19, não se deve ao vírus propriamente dito, mas a patologias pré-existentes que lhe debilitaram o organismo (…). Face ao inesperado desafio, a única vacina eficaz, para a nossa União, é um ambicioso projeto reformador” (Andrea Canino, in Expresso, 2020/4/20). Recordo uma frase de Merleau-Ponty: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”. Também a verdadeira política, diante do covid-19, deve ser reaprender a ver o mundo. Num ponto todos devemos convir: há uma ordem sócio-económico-política que gera uma desordem, no mundo todo; há um establishment que recusa respeitar os povos, como nações; e que mantém impérios colonizadores, que fazem de cada um de nós e de toda a natureza coisas e coisas mercantis; e que desregulam os homens e a natureza. Assim, o coronavírus resulta, se não laboro em erro, da ciência sem consciência, que os impérios nos impõem. Mas, agora, já não cito outro poeta. Hoje, faço anos…
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto