Espaço Universidade Os compadres (artigo de José Antunes de Sousa, 106)
Da mesma forma que nada há mais eficaz para armar uma rixa do que uma herança, por mais pequena que seja, assim também nada parece mais seguro para a reconciliação de amigos desavindos do que o comum sentimento de culpa.
Como já intuíram os meus fiéis leitores, vem isto a propósito do mais recente e espantoso desenlace do qual Eça de Queiroz não teria hesitado em apropriar-se: os senhores Costa e Vieira abraçados a carpir erros e excessos passados numa discreta vivenda em Felgueiras. Aliás, desde os tempos do Zé do Telhado, que aquela zona oferece oportunos esconderijos.
Mas vamos à teimosia dos factos: era uma vez dois amigos, e que assim se mantiveram enquanto a sua ligação se expressou de modo assimétrico: um, o senhor Costa, o todo poderoso presidente absoluto do Futebol Clube do Porto, o outro, o senhor Vieira, um desconhecido empresário de pneus, com discreta presença no Alverca, em cuja condição transferiu craques para o Porto, com paragem no apeadeiro do Salgueiros. Um prodigalizava amizade do alto do seu trono, enquanto o outro a mendigava, como neófito nos negócios da bola. A esta amizade equilibrava-a a assimetria.
Mas tudo se complicou quando entrou em campo a simetria: passaram a ser rivais - e lá se foi a antiga amizade. Sim, só há conflito entre protagonistas relevantes: ninguém luta contra uma criança desvalida!
Mas neste caso há mais um sério interveniente que alimentou a peleja incendiária durante estes anos todos: seu nome - impunidade.
Aquela sensação narcísica de se ser dono de um território à margem da lei, um estado dentro e acima do Estado, essa sensação de se estar sob a umbela protectora de uma lei acomodatícia, desatou-lhes o garrote e libertou-os do açaime de qualquer poder coercitivo: pedras, granadas, emboscadas em viadutos - valia tudo!
Curioso: um ano em que o FCP fez do estádio da Luz o salão de festas para celebrar a vitória em mais um campeonato, o senhor Vieira mandou desligar a luz e ligar a rega. Há uns meses, o senhor Costa, numa ousada e arbitrária gentileza do agora seu amigo, gravou em camarote do estádio da Luz, um episódio televisivo recordando o feito portista: maior prova de amizade é difícil sequer imaginar.
Este caso, para nos mantermos no campo da geometria, é circular: estamos de regresso ao ponto de partida: o que é que os fez agora cair nos braços um do outro? Isto: o fim da impunidade. A nova e imprevista sensação de vulnerabilidade perante a lei geral teve o condão de unir aqueles que, afinal, sempre estiveram unidos pelos excessos e desmandos - e esse sentimento de culpa vem agora uni-los, em comovente drama de irrenunciável cumplicidade.
A impunidade abriu e cavou a trincheira, o dedo em riste do procurador fez calar as trombetas e enterrar o machado de guerra.
Há sempre sangue no armistício. A paz sob a ameaça das armas é pacificação - que a paz gera-se no coração.
Esta serôdia amizade pode fazer baixar o ruído, mas está longe de trazer a paz ao futebol.
José Antunes de Sousa
Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa