Espaço Universidade O Professor Aurélio Pereira (artigo de Manuel Sérgio, 360)
Há sete anos e alguns meses, recebi um telefonema do Dr. José Lima, responsável pelo Plano Nacional de Ética no Desporto (IPDJ/SEDJ), com uma proposta que me deu um júbilo enorme: “O Aurélio Pereira propõe-nos um almoço, na quinta-feira da próxima semana (2014/1/23), em Alcochete. O que acha?”. O que havia de achar eu que me considero discípulo do Aurélio Pereira, mormente do seu trabalho que, no âmbito da formação, considero inigualável em toda a história do futebol português? Respondi imediatamente ao Dr. José Lima (também meu querido Amigo e Mestre): “Estou à vossa disposição e agradeço-vos que tenham permitido a minha presença”. Há mais de 40 anos, venho eu dizendo e escrevendo que a prática é mais importante do que a teoria e que a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática (cfr o meu livrinho A Prática e a Educação Física, editado pela Compendium, em 1977). De facto, não é a teoria que transforma, é a prática. Qualquer prática necessita de escutar, estudar, ordenar os dados novos que a teoria lhe sugere mas, sem a prática, não há transformação possível da realidade, ou seja, sem a prática, para nada serve a teoria. E eu sou um teórico, um teórico tão-só. Por mais aparato conceptual que tenham as minhas palavras, considero-me sempre um aluno atento e respeitoso, diante dos mais notáveis treinadores e jogadores de qualquer modalidade desportiva. O motor da história não são as ideias, não são os valores, mas as pessoas nas suas práticas diárias. Os valores são indispensáveis ao evoluir do progresso e do desenvolvimento, “no entanto, não são eles verdadeiramente os determinantes do processo histórico. Este tem uma base material, objetiva, que transcende largamente a consciência e o querer daqueles que nele intervêm” (José Barata-Moura, Para uma Crítica da “Filosofia dos Valores”, Livros Horizonte, Lisboa, p. 82). E, depois de acumular tantas evidências da superioridade da prática sobre a teoria (embora prática e teoria sejam partes do mesmo todo) fácil me foi chegar à conclusão de que, sem a palavra dos “práticos”, o meu saber teórico podia ser falso. Por isso, não podia esquivar-me a uma proveitosa conversa com um treinador de futebol da estatura mental e moral de Aurélio Pereira.
Ele respondeu pacientemente ao meu questionário e ainda fraternalmente me deu a “chave” dos seus êxitos: “Para os meus rapazes do Sporting, eu sempre fui mais diretor espiritual do que treinador de futebol”. Esta frase é digna de pertencer à galeria das melhores frases que um treinador desportivo não deve esquecer nunca. Se não há jogos, há pessoas que jogam, o treinador de futebol deve saber evidentemente de futebol mas o seu discurso, a sua conduta devem ser também perfeitamente compagináveis com o que de mais culto e solidário a vida tem, para que o futebol se transforme num auxiliar à formação do senso crítico, um espaço que ensine a colocar ao futebol problemas éticos. “O homem que descobriu Futre, Figo, Cristiano Ronaldo (…) e tantos outros; o homem que fez da formação do Sporting uma das melhores da Europa, coroada com dez jogadores formados nos leões, na Seleção que conquistou o Euro-2016” (Rui Miguel Melo, in A Bola, 2021/6/4) – ou seja, Aurélio Pereira, tem o condão de educar em treinos de iniciação ao futebol. Não é fácil! Eu não sei mesmo quem o faz melhor do que ele! A educação tem tentado muitos caminhos, mas não tem tentado todos. O “mister” Aurélio Pereira pode ensinar-nos mais um. Há toda uma retórica poético-sentimental, em torno da palavra ética mas, na prática, há quem se esqueça que o bom jogador torna-se melhor, assumindo e vivendo valores éticos. Depois o “mister” (por que não Professor Aurélio Pereira?) assinala corretamente a necessidade de uma “abertura” do clube às famílias dos jogadores, acentuando o papel da família no processo educativo do jogador, designadamente do jovem jogador. É conhecido que Dolores Aveiro , mãe de Cristiano Ronaldo, nos momentos de dúvida e desorientação, que lhe infernizavam a vida, consultava Aurélio Pereira e escutava atentamente os seus conselhos. Costumo dizer que não há “periodização tática”, mas “periodização antropológica e tática”, pois que, no treino, não basta aprender um “saber-fazer” técnico e tático, também importam aqueles valores sem os quais impossível se torna viver humanamante. Aurélio Pereira sabe tudo isto. E há muitos anos já. Daí, o seu currículo desportivo, que, no âmbito da formação é, digamos sem receio: inigualável.
Pela primeira vez torno público o seguinte: levei a minha tese sobre a motricidade humana ao almoço, que refiro no começo deste artigo. pois que senti a necessidade de submetê-la à crítica arejada e livre do Aurélio Pereira. Perante o meu espanto, não só já a tinha lido, “há pouco mais de um mês” (sic), como lhe reconheceu quase total equiparação ao seu trabalho no Sporting: “De facto, não a conhecia, mas concordo inteiramente com ela”. Ou seja, como eu já calculava, não precisou do meu contributo teórico para nada, no trabalho que vem desenvolvendo no Sporting, mas, sem nunca blasonar de “entendido”, mostrou-me que sabia o essencial da minha tese de doutoramento e ainda aditou um generoso “nihil obstat”. Não sei se ainda posso repetir, “ipsis verbis”, as palavras de Aurélio Pereira. Mas tento um breve resumo: parecia-lhe evidente que o desporto só como ciência humana deveria teorizar-se e praticar-se; e, porque ciência humana, o treino deverá portanto ocupar-se, simultaneamente, das dimensões física, técnica, tática, intelectual e espiritual; para ele, Aurélio Pereira, a dimensão espiritual deve estar presente no treino e na competição pois, sem a vivência de determinados valores, nem sempre o que é humano preside ao que se diz desportivo. Ainda marulha, nos nossos ouvidos, a exclamação distante de Cassius Clay, ao sair do ringue, onde acabava de ser proclamado campeão do mundo de boxe: “Que ninguém tenha dúvidas, eu sou um deus, um deus autêntico”. Este mito individual reveste as formas mais proteicas, no espetáculo desportivo, mas todas elas inebriam, entontecem e podem levar a um vedetismo permanente. Complexo de incomparável figura nacional e internacional é um mito que frequentemente enfuna um campeão, nas artes, nas letras, nas ciências e… no desporto e pode arrastá-lo na corrente centrípeta da ambição: impor aos outros o aplauso constante e acéfalo das suas qualidades. Quando Aurélio Pereira nos diz que é mais um diretor espiritual do que um treinador de futebol, percebe-se os grandes objetivos do seu trabalho, entre crianças e jovens.
Recordo o que venho escrevendo, há anos já: “o desporto altamente competitivo reproduz e multiplica as taras da sociedade neoliberal que nos governa”, E, no entanto, também, em pleno seio deste desporto encontramos exemplos de generosidade, de solidariedade, de “amor ao próximo” (usando palavras do Evangelho); também em pleno seio deste desporto encontramos homens, verdadeiros Professores, como o Aurélio Pereira, que ensinam os clubes desportivos a assumir a provisoriedade das suas fórmulas, pois muito há a fazer no âmbito da educação dos “agentes do futebol”. Rolam os anos, arrastam-se os problemas, corrompem-se as situações, anquilosam-se as instituições e este desporto, “grosso modo” (reconheço as raríssimas exceções) nem educa, nem “faz bem à saúde”. Graves portanto são as consequências do trabalho (principescamente remunerado) de muitos dos que se alcandoram a postos de mando e de influência. Tudo está, de facto, preparado para ninguém poder bulir nos tronos dos intocáveis: “plus ça change, plus ça reste la même chose”. Roland Barthes escreveu, a propósito: “car la fin même des mythes c’est d’immobiliser le monde”. Por isso, há necessidade absoluta de mais figuras estruturalmente lúcidas, afáveis e de irrepreensível conduta moral, como o Professor Aurélio Pereira. O francês Pierre Parlebas (cfr. Elementos de Sociologia del Deporte, Universidad Internacional Deportiva de Andalucia, Malaga, 1988) destaca, no termo “desporto”, as conotações ideológicas e moralisantes que integram este paradigma, mas é a competição que ganha maior relevo entre os “agentes do desporto”, no mundo hodierno. Poderia ainda lembrar Huizinga, Georges Magnane, Eric Hobsbawm, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Jean Marie Brohm e José María Cagigal, como autores que deverão conhecer-se, pois que deram um contributo relevante a uma rigorosa definição de “desporto”, como ele atualmente se entende. Pelo seu magistério moral e conhecimento tecnocientífico, também o Professor Aurélio Pereira merece ser conhecido. Mais do que grandes livros, Aurélio Pereira deixará aos vindouros grandes páginas de uma vida exemplar – como ser humano e “homem do futebol”.
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto