Espaço Universidade Gonçalo M. Tavares: uma forma diferente de pensar (artigo de Manuel Sérgio, 340)
O Gonçalo é homem para, intimamente, sorrir das frases comicieiras, da retórica “vieux jeu”, dos lugares comuns dos jornais e das redes sociais. Para ele, a posse de uma ideia é tudo, é como o deslumbramento diante da mulher amada. Assim como o mito e a ciência (o primeiro mais baseado na emoção, o segundo de raiz mais racional) se perpetuam como dois modos distintos de organização da experiência e da praxis, assim também a arte apareceu moldada como forma de transformar a experiência vivida em objeto de conhecimento (desta feita, se bem penso, através do sentimento). Para o Gonçalo M. Tavares, um artista de génio, em tudo o que escreve (tanto em prosa como em poesia), mais do que emoção, ou razão, ou sentimento – há intuição, há um conhecimento novo, insólito, que ele transforma em arte, da sua visão do mundo, da vida, da sociedade e da história. No velho filme Amadeus, de Milos Forman, visiona-se uma cena que pode mostrar didaticamente o que pretendo dizer. A sogra de Mozart, afogada em palavrosa excitação, emocionada e triste, explica ao compositor por que a filha dela o abandonou. O Mozart, mau grado a tristeza que também o excruciava, paulatinamente deixa de prestar atenção à contumélia, para sintonizar-se na melodia e no ritmo do discurso da sogra. Ele começa a escutar uma nova musicalidade por trás do discurso reboante e compõe uma área para a A flauta mágica. A partir do poder interpretativo e seletivo dos seus sentidos, por outras palavras: a partir de uma intuição, ele cria ideias que não podem reduzir-se a um discurso verbal explicativo, porque a genialidade é mais do que razão. No génio, não se trabalha, tão-só cartesianamente, com a clareza e a distinção, mas principalmente com o impreciso e o obscuro. Se é de ter sempre em conta as raízes antropossociais do conhecimento científico, o que o génio faz não se inscreve num solo racional apenas, pois que o campo da racionalidade é demasiado estreito para fecundar o produto do trabalho de um génio. É pela intuição (uma hiper-razão?) que o génio cria.
Na Grécia Antiga, a função da arte resumia-se a imitar a realidade. Diz-se que Apeles (segundo Plínio, o Velho, o mais célebre pintor da Antiguidade) pintou um cavalo com tal realismo que os cavalos, ao vê-lo, relinchavam turbulentos. Para Aristóteles, a arte imita a natureza. Coube a São Tomás de Aquino retomar o pensamento de Aristóteles e recuperar o mundo sensível que, para a Idade Média, era a principal fonte de pecado. Na Renascença, as artes estão sujeitas a regras de perfeição, racionalmente percecionadas e que podem formular-se e ensinar-se, com precisão admirável. Sobressai, então, nas academias, o estudo das obras da Antiguidade onde, segundo os renascentistas, reinara a perfeição. Só na década de 30 do século passado (sob a influência de Wittgenstein) a obra de arte deixou de representar a natureza, adquirindo assim um estatuto próprio. Já antes, após Kant, nasceu o “pensar por si mesmo”, com discursos aliciadores, recusando a orientação tutorial de quem quer que seja. Se não laboro em erro, o “pensar por si mesmo” foi apadrinhado pela secularização. “A trajetória da secularização definiu-se, numa das suas dimensões pela crescente submissão da dignidade humana e da ordem social ao tribunal da razão, perante o qual a própria fé, como toda a autoridade, se teria de justificar (…). Desde o Positivismo, o Marxismo, o Neopositivismo ao Freudismo e ao Racionalismo Crítico, a fé é um resíduo dos tempos primitivos, um fóssil petrificado, um testemunho da infância da humanidade” (Miguel Baptista Pereira, Modernidade e Tempo, Livraria Minerva, Coimbra, 1990, p. 46). São as “razões do coração”, de Pascal, que avivam ao Gonçalo M. Tavares a sua maneira de pensar? Que ele é um escritor genial, disso já não duvido. Manifesta-se até numa inquietude de fundo que o faz ver tudo em tudo, talvez porque tudo entenda à luz de uma “nova racionalidade”? Ele sabe casar, como poucos, o racional com o irracional? Como aqueles homens da ”bossa-nova”, que eu conheci, no Brasil, na década de oitenta? Lembras-te, Régis de Morais? Eu arreceava-me de certas conversas, porque só vos interessava a “bossa nova” com sabor a democracia…
Mas, examinemos o que ele escreve, no Expresso, de 16 de Maio de 2020: “Na Europa, os humanos já começam a regressar e com eles o medo muda de posição. O medo tem de voltar ao coração dos animais selvagens. Os animais selvagens vão ter de recuar para 2019 (…). Dois nomes têm as coisas, um nome que vem da sua prática natural e um nome que vem e um qualquer baptismo aleatório. Se chamares avião a um barco ele não levanta voo (…). No meio da multidão é preciso levantar o braço. Porque é que a felicidade te irá escolher, se todos estão com o braço no ar? Na cidade, demasiadas pessoas a repetir: irá a felicidade encontrar-me? (…). Um só homem infetou 17 pessoas em bares numa única noite, na Coreia do Sul. Um homem infectado é uma mancha de tinta. Um homem saudável, água limpa. Eu era uma mancha de tinta , mas não sabia – poderia dizer o homem em sua defesa. Ele era uma mancha de tinta e eu não sabia - podiam dizer os outros 17 homens em lamento ou acusação (…). E imagino duas pessoas que não se conhecem. Uma precisa da outra. É urgente. Cada um levará uma bandeira branca para se identificarem na cidade. Mas quando chegam à rua vêem que há milhares de pessoas com uma bandeira branca. Uma chuva tremenda na noite de ontem, frio e chuva e depois menos chuva. Cães encharcados. Satisfeitos. Talvez Deus leve também bandeira branca, alguém diz. E daí não o encontrarmos”. Sem quixotismos gratuitos, posso dizer (lá vou eu explodir o silêncio!) que estou entre as primeiras pessoas que descobriram no Gonçalo um escritor de génio. Só um escritor, ou um pensador também? Fui o co-orientador da sua tese de doutoramento. Aconselhei-o, um dia, a ler um texto de Derrida do livro Marges de la philosophie. Respondeu-me prontamente: “Vou ler Derrida, pela primeira vez”. No próximo dia que nos encontrámos (15 dias depois, se não estou em erro) eu tive a perceção que ele já sabia mais de Derrida do que eu. Fiquei impressionado, deveras impressionado. E não resisti a dizer-lhe, em tom ameno: “A partir de hoje, o meu amigo escreva a sua tese, sem a minha orientação”. E aduzi: “Mas apareça, que eu quero aprender consigo”.
Propor a uma pessoa tão-só o humano é atraiçoá-la. Portanto, a essência do ser humano não pode ser apenas biológica. O François Jacob de O Jogo dos Possíveis procura ensinar-nos isto mesmo, quando escreve (cito de cor): “Não é a partir da biologia que pode formar-se uma ideia de homem. Pelo contrário, é a partir de uma certa ideia de homem que pode utilizar-se a biologia ao serviço do homem”. Uma Viagem à Índia é, de facto, um dos grandes livros da nossa Literatura. Nele, Gonçalo M. Tavares sublinha: “Viajar não faz bem apenas aos homens, / também é bom para os próprios percursos / ter homens que os percorram. / Um caminho é como uma casa: / é necessário abrir a janela, de vez em quando, / para que o ar circule. / Precisa de ser arejado, o caminho e os homens / (…). Até o ar livre precisa de mudar de quando / em quando de ar. A circulação é um bem / inestimável para qualquer forma da natureza. / Uma competição de ciclismo que percorra uma / montanha é uma dádiva para a montanha. / Os animais e tudo o que se move / movem-se também em nome das coisas imóveis” (pp. 218/219). No prefácio deste livro, que marca indelevelmente as surpreendentes faculdades do Gonçalo, observa Eduardo Lourenço: “Uma Viagem à Índia não recomeça em tempos outros a eterna busca do Oriente, de todos os Orientes onde o Gama já aportou por nós, mas tenta proeza mais temerosa, a da re-escrita da aventura verbal onde ela está consagrada, como a de Homero para Joyce. É sobretudo a contra-epopeia, ao mesmo tempo luminosa, paródica e burlesca, de um herói de tudo que subverte todas as versões épicas da Viagem que inventámos e que é sempre, ao fim e ao cabo, a não viagem que nós próprios somos” (p. 15). No Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavares diz-nos quem é, invocando Sylvia Plath (Ariel, Relógio d’Água, Lisboa, 1996): “O teu corpo / Magoa-me como o mundo magoa Deus”. De facto, quem amou muito, muito sofreu. Talvez aqui se compreenda a morte e a ressurreição de Cristo. Sim, é verdade: “Deum nemo vidit unquam” (Deus ninguém alguma vez o viu). Mas (repito-me) para mim, um homem tão perfeito, como Cristo, só pode ser Deus.
Assim como o mito e a ciência são formas históricas de organização do pensamento, assim a genialidade (o grau supremo da arte) surge como um caso privilegiado de entendimento intuitivo do mundo. Ele vê diferente do homem vulgar porque, a partir dessa natureza que o rodeia, ele não cria cópias, retratos, mas uma nova natureza e novos mundos. E assim uma nova forma de pensamento. Colho um pensamento de Hilton Japiassu: “A ciência moderna já nasceu com um projeto de desencantamento do mundo, tudo o que descreve e explica encontra-se reduzido a um caso de aplicação das leis gerais do mecanicismo, leis estas desprovidas de todo e qualquer interesse particular. Ao des-sacralizar o mundo, a ciência converte o homem num estrangeiro (…). Trata-se de um mundo sem magia, pois exclui toda a intervenção do supra-sensível, na ordem das coisas naturais e humanas” (A Crise da Razão e do Saber Objetivo, Letras & Letras, S.Paulo, 1996, pp. 104/105). Para todos os fenómenos, a ávida curiosidade dos racionalistas não se aquieta, sem uma explicação científica. Mas uma ciência que despreza a irreverência criativa do sonho, da magia, da poesia. Para mim, no entanto, não há criatividade sem poesia, não há portanto “revolução científica”, rutura epistemológica, mudança de paradigma, sem poesia. Parece assim não ter sentido, surdo pelo tropel de tanta rotina, desconhecer a indeterminação, a incerteza, a imaginação, no conhecimento científico. O Gonçalo M. Tavares, quando sente a lufada vital da sua imaginação, não esconde o que sente, o que vive, “A imaginação é um instrumento, uma coisa que age sobre as outras, altera-as como a mescalina, escreve Bachelard, a imaginação muda a dimensão dos objetos. Atenta ao mínimo, concentrando tempo sobre o minúsculo, transforma-o, como vimos, em coisa central; grande, portanto. Barthes lembra a história de certos budistas que conseguiam ver uma grande paisagem, numa ervilha” (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, p. 383).
No seu Qu’est ce que la philosophie? (Minuit, Paris, 1991), que escreveu na companhia de F. Guattari, Deleuze afirma: “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (p. 8). E prossegue duas páginas depois: “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos (…). Criar conceitos sempre novos é o objetivo da filosofia. É porque o conceito tem de ser criado que remete para o filósofo, como aquele que o tem em potência, ou que dele tem a potência e a competência. Não se pode objetar que a criação se diz do sensível e das artes, de tal modo a arte faz existir entidades espirituais e de tal modo os conceitos filosóficos são também sensibilia. Verdadeiramente, as ciências, as artes, as filosofias são também criadoras, embora só à filosofia caiba criar conceitos em sentido restrito”. E, na página 16, torna-se mais explícito: “Assim pois a filosofia é o ponto singular em que o conceito e a criação se relacionam entre si”. A primeira e a mais radical justificação de uma obra de arte, ou até de um projeto de pesquisa científica, está aqui: numa perspetiva de nova convergência dos saberes parcelares, donde se divisa o humano em trânsito, em movimento intencional para o “mais ser”, se possível: para o Absoluto”. A filosofia, segundo Deleuze, cria conceitos. O génio, no meu modesto entender, cria conceitos também. É a própria dialética do pensar criativo que o impõe. Demais, “o pensar não está fechado sobre si próprio, nem primordialmente consigo próprio (…), porque o pensar não começa em si próprio, não vive de si próprio, não se constitui realmente como esfera autónoma, pairante (…). O pensar é uma função de um viver material concreto. Não porque seja um simples eco retardado dele, mas porque é sua componente humanamente fundamental” (José Barata-Moura, “É a filosofia trabalho?”, in AA.VV., O Trabalho Filosófico, Instituto de Estudos Filosóficos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1989, pp. 68/69). O “logos” último do génio devém do seu modo de ver diferente. E, porque vê diferente, ele teoriza diferente. Digamos mesmo: é uma forma diferente de pensar.
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto