«EM NOME DA VIDA» - A minha quarentena (artigo de José Neto, 101)

Espaço Universidade «EM NOME DA VIDA» - A minha quarentena (artigo de José Neto, 101)

ESPAÇO UNIVERSIDADE27.04.202015:07

Dei comigo um dia destes ao cair da tarde, sentado nas minhas escadas de pedra de acesso à entrada de minha casa, acompanhado da minha Nelinha e saborear o belo reportório dum cantar de melros, acomodados num cedro que cobre algumas das camélias ainda em flor e que dão atraente colorido a um pequeno lago que lhe cai aos pés.

Refleti no dia longo que havia passado e que curto se tornou por tanto ainda por fazer, e a dispensar a reflexão de continuidade para o dia seguinte.

E o tempo voou, desde o amanhecer, com a colocação das notícias em dia, para me atarefar no cultivo duma horta, e cujos produtos de plantação e sementeira me desafiam para uma animada conversa, então as fruteiras, que receberam por mim uma valente poda, dão à natureza a sua graça pelos frutos que já despontam, até à jardinagem composta de dezenas de camélias, hortênsias, amores - perfeitos, petúnias, azálias, roseiras, etc, me consolam pelo esplendor da sua beleza despontada para um colorido enriquecedor.

Após o almoço, numa ligação via on line para a plataforma, onde 2 turmas de alunos do mestrado em treino desportivo me cativavam pelo afeto, mas que o valor da distância sinceramente me incomodava … este privilégio perdido de ter bem próximo de mim aqueles a quem ajudamos a renovar a vida em cada dia, semeando perguntas e descobrindo generosamente a arma das ideias, misturando sorrisos e abraços numa vontade permanente de ajudar a conquistar o sonho do tamanho do mundo. Mas não os ter, ali bem próximo, sentir-lhes o olhar, apurando-lhes a capacidade do entendimento, imaginação, curiosidade e sensibilidade, numa ética transbordante de compaixão ontológica do belo no e para o outro!... Mas a obrigação do cumprimento do dever na distância assim o exige!...

Em seguida, uma mudança de equipamento, para no meu ginásio levar a efeito meu programa diário de exercício, obedecendo criteriosamente às regras de que “não fazer o que deve ser feito ou fazê-lo de forma inadequada, são males do mesmo tamanho”. Assim, na bicicleta, stepper, remo ou tapete, o cuidado em não ultrapassar a regra de ouro da frequência cardíaca (60 a 80% de 220-idade) e nas máquinas de musculação em circuito, o código de valores imposto pela regra de 25 a 30% da força máxima, efetuando 3 séries de 20 repetições, com intervalo de 30 seg.s, e no final um tempo dedicado aos alongamentos, associando técnicas de relaxação e imaginação mental com recuperação respiratória.

Ainda com tempo de 1 a 2 horas para dedicar à leitura, acabado de reler o cardeal Doutor D. José Tolentino de Mendonça e a obra continuada do Professor Manuel Sérgio, combinada com biografias de personalidades, investigadores, conferencistas e líderes espirituais, autores de autênticos bestselleres, mundialmente reconhecidos … e já à espera do “Amor Eterno” de David Borges (depois de ler a introdução, quanta é a vontade de iniciar esta leitura…) e … cá estou sentado nas escadas em repouso para mais tarde, após as notícias rever o filme “ A vida é bela” de Roberto Begnini e ouvir um pouco de Vangelis antes de adormecer!...

Entretanto já quase a cair a noite, ouço o toque das trindades do velho sino da minha aldeia e que rompem o espaço e meigamente vêm até mim e nelas, uma das mais belas  recordações da minha vida …  dum menino que subiu a montanha, quando pelo Natal minha avó de cesto de canas agasalhado, me aconchegou  e quando uma arreliadora pneumonia me queria levar e de vestidinho de renda asseado, me livrou na reconquista do milagre para a vida, como referi numa publicação: “Meus contos de Natal” - Paços de Ferreira - Edição Tribuna (2012).

Os meus avós habitavam numa casa humilde, a mais próxima da Igreja onde o velho sino sinalizava com o toque das trindades o cair da noite. Recordo os olhos meigos da minha avó que sempre vigiava meus passos e os doceis lábio de meu avô que aqueciam meu corpo, afagando-me com trémulas carícias com aqueles mãos grandes e rugosas e talhadas pela árdua luta do manuseio da enxada e do arado que as lides da lavoura de sol a sol para não dizer de noite a noite, eram o seu quotidiano desafio. Sempre associo a minha vida numa relação divina com meus avôs, vivida entre gente pura e simples da terra que me viu crescer, aquele paraíso de minha infância, pátria encantada aonde a gente ainda hoje ao abrir os olhos nela se revê.

Mas em relação ao toque das trindades, um dia após ter ornamentado o meu presépio, fui ao encontro da Srª Rosa já velhinha, e me ofereci para ao cair da noite tocar as trindades.

- Mas tu não podes menino, nem sequer chegas ao sino !..., respondeu-me.

- Olhe, empreste-me um banquinho!.. retorqui-lhe eu.

- Bem, vai lá, já que me custa tanto a subir aquelas escadas todas!. – disse-me ela, entre um sorriso de espectativa.

Tão pronto me coloquei debaixo, agarrei no badalo com as duas mãos e com toda a força, comecei: - Tom …Tom … Tom… - parecia que estremecia todo por dentro, mas nada de desanimar e,  – Tom … Tom … Tom – até via estrelas, tão forte era o zumbido daquele sino que caía sobre mim. Mas tinha de terminar a tarefa, e  - Tom … Tom … Tom!...

Nem sei como consegui descer da torre, ao encontro da velhinha sentada no muro do adro, tendo à minha espera uma mão cheia de bombons, brilhando de todas as cores.

A partir daí muitas vezes eu esperei ao cair da tarde pelo banquinho para subir à torre e tocar as trindades, e sentir o som que se tornou insubstituível do grande e velho sino da Igreja da terra da minha aldeia…

E foi assim que um dia destes dei comigo, também ao fim da tarde, sentado nas minhas escadas de pedra, nesta conflitualidade indexada ao desânimo, dúvida e cansaço, mas com a visão da esperança, olhando para dentro e tentar descobrir neste mundo transitório e passageiro, o tempo passado e nele me vejo a correr para o colo de meus avozinhos, sentindo o tempo presente, onde mil vozes nos gritam para a conquista do essencial para viver, e preparando o tempo futuro envolto numa generosa e jovial esperança para o abraçar, numa renovada felicidade do reencontro com a vida!...

Ah, como poderia esquecer?! ... Ainda tive tempo de dedicar um momento de magia para brincar com o meu adorável netinho, na procura serena sentimental mas realista, encontrar uma bela manifestação da minha vida, sentindo o ar que escapava do seu sorriso, numa construção de imagens e memórias como eco duma divina existência!...

José Neto: Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto; Formador de Treinadores F.P.F. /U.E.F.A.; Docente Universitário.