Espaço Universidade Ciclismo do Boavista – um caso de resiliência (artigo de José Augusto Santos, 20)
Todos os que comigo se relacionam sabem que o meu coração só tem uma cor – azul e branco. Desde Jaburu y sus muchachos que a minha elevação religiosa tem como pano de fundo, não a cor alva de Fátima, mas as cores monárquicas das Antas. Daí poder-se falar com toda a propriedade do reino do Dragão. Contudo, no caso particular do ciclismo, sou um pouco traidor. Por exemplo, na última volta a Portugal rejubilei com a vitória do F.C. do Porto, mas ficaria igualmente feliz se tivesse ganho o Boavista.
Já ouço o coro dos indefetíveis azuis e brancos proclamando aos ventos os epítetos mais cruentos – traidor, vendido, falso, submarino, e outras denominações de igual quilate terminando com a sentença pública – pelourinho já com ele. Certo, assumo-me, não como traidor, mas como aquele fulano que no altar prometeu viver para uma só mulher e que sensível às curvas alheias rapidamente se esqueceu da sagrada promessa.
Antes de me lançarem às feras têm de me dar oportunidade de, perante a ágora, justificar as minhas tergiversações clubístico-amorosas ou a minha abrangência emocional à partida paradoxal. Passo a explicar. Há uma razão forte para eu ter um especial respeito pelo Boavista como clube e um particular carinho pela sua projeção ciclística.
Passemos ao respeito ao Boavista como um todo. Além de ser, tal qual o F.C. do Porto, um importante empregador para muitos dos meus colegas e alunos nas suas várias secções, o que de imediato deve merecer o respeito de toda a gente ligada ao desporto, existe uma razão particular que obriga a uma dívida eterna de gratidão. Pelo fim dos anos oitenta do século passado, andava eu às voltas com o meu doutoramento que tentava estabelecer pontes metodológicas entre o futebol e o atletismo. Como nota para a história, fui o segundo doutorado português nas coisas do futebol; o primeiro foi o meu colega Jorge Castelo.
O meu estudo visava, numa das suas vertentes, analisar as eventuais diferenças a nível fisiológico, antropométrico e motor entre equipas de futebol de diferente nível competitivo. Após a finalização do design do estudo comecei a contactar os clubes para a recolha de dados. Para a caracterização do futebol da 1ª divisão de imediato pensei no F. C. do Porto. Contactei o médico do clube para lhe expor o estudo. Ele, de imediato, começou a levantar diversos obstáculos entre os quais se salientava a dificuldade de entrar no seio de uma equipa de futebol de alto nível com as perturbações consequentes à realização de um estudo como o que eu pretendia realizar. Mas, para meu “consolo”, prontificou-se a ceder-me alguns dados fisiológicos da equipa principal de futebol. Muito assertivo, informou-me no decorrer da conversa que em relação ao VO2max o mais capacitado era o capitão de equipa, seguindo-se os vice-capitães, depois os craques da equipa principal e por último os miúdos que tinham chegado dos juniores. Desconfiei de uma hierarquia fisiológica determinada pela importância hierárquica dentro da equipa e zarpei para outras paragens.
Fui logicamente desaguar na outra equipa de elevado nível competitivo da cidade – o Boavista Futebol Clube. De imediato o treinador, Manuel José, e o médico da equipa José Ramos, meu querido amigo que tanto me ajudou no meu doutoramento, se disponibilizaram em apoiar-me na consecução da minha tarefa académica. De imediato, o Boavista que era um clube “inimigo” passou a ser olhado por mim com o respeito que nos merece quem está ao nosso lado nas subidas mais íngremes das montanhas da vida.
Isto no concernente ao clube como um todo. No caso particular do meu carinho ao ciclismo do Boavista a história tem outros contornos e tem um nome subjacente – José Santos.
O Professor José Santos foi meu colega de curso e daqueles a quem me prendi afetivamente mais forte pois, tal como eu, ele tentava conciliar o trabalho e a prática desportiva com os estudos. Tempos difíceis passamos para levar a nossa nau a bom porto. Recordo com emoção que no final de um dos anos letivos ele resolveu competir na Volta a Portugal. Eu e todos os colegas aconselhamo-lo em uníssono: - Zé, não vás, tens o corpo todo condicionado pelas múltiplas adaptações que as aulas práticas te provocaram e vais sofrer e desistir. Tens treinado pouco o ciclismo e a coisa vai-te ser mesmo muito dura. Lembremos, que no meu curso, no ano em que o José Santos fez a volta a Portugal, a nossa carga horária semanal dos denominados Estudos Práticos consistia em 4 horas de basquetebol, 4 horas de ginástica, 4 horas de atletismo, 4 horas de natação, 4 horas de andebol e 4 horas de futebol. Isto durante todo o ano. As aulas práticas eram de manhã e muitas vezes, nas aulas teóricas de tarde adormecíamos e éramos admoestados pelos professores que nos recriminavam a falta de respeito. Não, não era falta de respeito, era somente cansaço extremo. Ele respondeu com têmpera que o caracteriza: - Se for não desistirei. Foi, ficou em último, mas não desistiu.
Em 1982, um senhor chamado Tavares Rijo, insigne inspetor da Polícia Judiciária, como diretor das modalidades amadoras do Boavista Futebol Clube resolver abalançar-se na aventura do ciclismo. Quando Tavares Rijo criou a seção de ciclismo, por estranha metamorfose que só as artes cabalísticas podem justificar, verificou que o seu braço direito tinha desaparecido. Perguntou ele de si para consigo: - Que vou fazer agora só com o braço esquerdo? A resposta foi pronta: - Procurar o direito pois assim não consigo andar de bicicleta.
Quando encontrou Tavares Rijo o seu braço direito? Em 1986, quando convidou José Santos para responsável técnico da seção de ciclismo. José Santos, como vimos atrás, é um homem especial. Quando o campeoníssimo Marco Chagas, nos seus bem fundamentados comentários à volta a Portugal afirma que o Professor José Santos ganha sempre, tem toda a razão. Quando José Santos cai, e já caiu algumas vezes, ainda o corpo não está a tocar no chão e já está ele a delinear a estratégia para rapidamente se levantar. Esta é a mais maravilhosa lição que o desporto nos dá. Este espírito tenaz na erradicação da derrota é o signo mais eloquente que caracteriza um desportista. José Santos é assim.
Tavares Rijo é um homem especial também. Com um corpo minguado de fisicidade exprime, a cada momento, uma força interior e uma vontade arrojada que, como inspetor da Polícia Judiciária, lhe permitiram encarar e prender sem vacilar alguns dos maiores facínoras que a lusa grei produziu. Tem um feitio difícil, mas um carácter franco, aberto, leal e lutador.
Tavares Rijo-José Santos, uma dupla de sucesso. Em quê? Fundamentalmente na perseverança. Sei que são amigos, mas amigos conflituosos. O José Santos é um homem habitualmente vestido com a capa do sério. Tavares Rijo é o seu oposto, aberto, jovial, confrontador. Sei que os seus diálogos são muitas vezes tocados com uma aragem de agressividade, mas têm sabido manter uma dignidade relacional que tem permitido o ciclismo do Boavista sobreviver a muitas tempestades.
Esta união de dois amigos que têm uma grande paixão pelo ciclismo é uma verdadeira síntese de contrários. Tavares Rijo, ao manipular o humor como arma de crítica, consegue atenuar ou desarmar a irascibilidade do José Santos, não permitindo que os motivos de fricção ponham em, causa a grande causa – a sobrevivência, cada dia com maior qualidade, do ciclismo do Boavista.
Por isso, quando vou para a estrada vestido à Boavista tenho o mesmo orgulho e satisfação como quando vou vestido à Porto. Em termos de ciclismo, e contra todas as ortodoxias religioso-clubísticas, em só posso cantar como o Marco dos caracóis – Eu tenho dois amores.
José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto