As coisas estranhas que acontecem durante o exercício físico (artigo de José Augusto Santos, 21)

Espaço Universidade As coisas estranhas que acontecem durante o exercício físico (artigo de José Augusto Santos, 21)

ESPAÇO UNIVERSIDADE28.06.202117:37

A minha querida amiga Susana Martins que foi minha monitora na lecionação da cadeira de Atletismo na faculdade emigrou para Inglaterra para ser “trolha” de elite, mais conhecida por engenheira civil, e questionou-me da seguinte forma:
 

Professor

Espero que esteja bem. Ando a treinar certinho para estar apta para quando formos atravessar o Reino Unido de bicicleta ( ah! Ah! Ah! ... riso aflitivo). Já que anda a fazer de consultório "sentimental" tenho uma questão. Porque é que fico com muito sono durante a corrida, ao ponto de bocejar? Normalmente acontece com corridas superiores a 10 km.  O professor devia criar uma conta no instagram/linkedin e divulgar corretamente o seu trabalho. É só uma (excelente) sugestão. 

Susana 

Antes de mais um reparo. Não tenho qualquer conta nas redes sociais. Estou virgem nesse aspeto. Penso que devo ser o único ser, no mundo ocidental, que se fica pelo simples email. Tenho algumas originalidades comportamentais. Por exemplo, nunca fumei um charro e consegui viver os maravilhosos anos 60 com a ilusão de uma juventude cheia de projetos impossíveis. Nunca me droguei com drogas duras e consegui momentos de êxtase contemplativo com a droga suave que me entrou fundo até aos cromossomas e que dá pelo nome de Desporto. Portanto, mesmo na juventude eu seria aquilo que a malta da pesada denomina de “fatela”. Vamos à tua questão.
 

Porra! Fazes cada pergunta que nem o Einstein conseguiria responder. Contudo, vamos lá ver se conseguimos fazer um pouco de luz sobre a situação. Logicamente que isto são abordagens muito tímidas pois um assunto como esse deve ter uma etiologia bem complexa. Se te acontece ter sono durante o exercício temos logo de pensar no centro regulador do sono a nível cerebral. Esse centro regulador do sono denomina-se Formação Reticular e faz parte do Tronco Cerebral, estrutura primitiva que regula funções primordiais, prioritárias na filogénese dos mamíferos e por arrasto humana.  A Formação Reticular controlo os ciclos de vigília/sono. Os humanos têm três estados de sono e despertar/excitação: vigília, sono (sono de ondas lentas ou de repouso) e sono e sonho (sono paradoxal, ativo ou de movimento rápido dos olhos). A Formação Reticular é uma espécie de Central inter comutadora que liga tudo a tudo. Por exemplo, se fores de noite por uma floresta e ouvires um tiro a Formação Reticular controla várias coisas: reação de alerta neuromuscular ativando os músculos como mecanismo de defesa, aceleração da frequência cardíaca, acentuação dos mecanismos de vigília cerebral, redução do fluxo de sangue da zona esplénica, etc. Quer-me parecer que existe uma interpenetração entre o estado de vigilância/consciência e os diversos estados do sono que podem ser desencadeados pelo exercício físico, principalmente o prolongado. Faço esta afirmação ousada com algum conhecimento de causa. Há uns três anos fui dar uma volta de bicla com os meus amigos, o que era habitual. Um dos trajetos era sair de Gaia, Marginal, Estrada de Entre-os-Rios que fazíamos até Melres, lugar onde acontecem de vez em quando provas de canoagem. Pois bem, numa certa manhã, chegamos a Melres depois de 25 km a dar-lhe forte no afã de nos deixarmos uns aos outros para trás. Eu fiz esse trajeto em jejum, o que era e é prática recorrente. Pedi uma Coca-cola e fui à padaria comprar uma bola de Berlim. Venho para a mesa e só me lembro de, com um guardanapo retirar o creme do pastel, e só retomei consciência ás 5 horas da tarde, acordando no hospital e perguntando à minha filha a razão de eu estar ali. O que se tinha passado? Isto, segundo os relatos dos meus amigos. Após o lanche retomamos a bicla e eu, nas subidas deixava-os sempre para trás. Esperava por eles e continuava sempre à frente. Deixei um dos amigos no cimo da avenida da República e outro a meio da mesma avenida. Cheguei a casa e sentei-me no bar que há debaixo da minha casa. Falei, falei, mas não dizia coisa com coisa e repetia frases sem nexo e de olhar vidrado. Os vizinhos assustaram-se e chamaram a ambulância que me transportou ao hospital. Fizeram-me vários exames, entre os quais um TAC cerebral e encefalograma. Tudo normal e a bioquímica do sangue tudo normal. Todas essas horas e eu sem consciência de mim. Só acordei para um estado de vigília consciente às 16 horas. Quer dizer, uma parte do meu cérebro esteve adormecido, enquanto outra parte, a que controla as funções musculo-motoras resolveu bem o problema de chegar a casa. Disse o médico da neurologia que esse apagão é coisa normal em nós e que temos todos pelo menos um episódio na vida, mas que dura segundos. Ora o meu demorou horas. Porquê? Treino intensivo em jejum? Sobrecarrega de glicose com o bolo e coca-cola? A cafeína da coca-cola? A fadiga acumulada de treinos anteriores? A juntar, o imenso trabalho intelectual que desenvolvia na altura? A resposta só pode ser dada por Deus, mas hoje não estou disposto a solucionar o problema. Despindo as minhas vestes divinas e vestindo as vestes telúricas tenho de procurar dar-te uma resposta lógica. Talvez que o teu sono em exercício seja um mecanismo de defesa contra o excesso de treino. O treino tem sido muito e forte? Aumentaste a intensidade sem respeitar o princípio da progressividade? Dormiste bem na noite anterior? Sabes que o bocejo sonolento durante o exercício físico é muitas vezes sinal de organismo não recuperado. Uma coisa é de assumir para já. Essa tua síndrome é muito mais usual do que possas pensar. Atletas em treino excessivo e descanso insuficiente têm tendência a ativar o sistema parassimpático que tem como função desligar a máquina contráctil. Lembra-te que um coração treinado está debaixo do controlo da estimulação vagal, daí a bradicardia reflexa ao esforço. O primeiro mecanismo de ativação neuromuscular passa pela inibição vagal. Talvez o teu vago esteja híper-ativado pelo cansaço. A máquina humana defende-se de todos os excessos. Se não estavas num estado de fadiga acentuada tudo deve estar ligado à conexão diferenciada entre as funções vegetativas e as neuromusculares. Somos um todo e quando uma parte de nós é estimulada o resto de nós adapta-se procurando recuperar a homeostasia. É lógico que essa tua síndrome não é fácil de explicar. Talvez a resposta seja exterior ao planeta Terra. Não serás tu uma alienígena? Estás a trabalhar em Inglaterra, terra de seres vindos de outro planeta, e.g. a Rainha Isabel II que está no poder desde que D. Afonso Henriques tomou Lisboa aos mouros.
 

Não descartando a hipótese de seres uma alienígena será conveniente, sempre que fores fazer exercício, levar contigo um gel para teres rapidamente acesso a uma fonte de glicose. Se quiseres tirar-te de dúvidas deves fazer um check-up completo para despistar eventuais desregulações hormonais. Estando tudo bem, não há dúvida, és mesmo de outro planeta.

José Augusto Santos é Professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto